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Reportagem: O calor da Patagónia

Texto e fotografia: Gonçalo Câmara

Gonçalo Câmara

São nove da manhã. Aterrei no Aeroporto Internacional de Buenos Aires Ezeiza. Estava claramente perdido no tempo. Não sabia a quantas andava. Para chegar até ao centro da cidade tive que apanhar um autocarro que me deixou em Puerto Madero. Dali era fácil seguir para qualquer direcção. Fazia Sol na Argentina. Já fora do terminal, de mochila às costas e com ar manifestamente desgastado, tirei o telemóvel do bolso e liguei à minha irmã que lá morava.

A Leonor saiu do carro, fechou a porta, eu deixei cair a mochila e demos um abraço. 

Deixei a mochila no porta bagagens e entrei no carro. Acabei por ficar uns dias em casa da minha irmã. Não havia necessidade de estar a gastar dinheiro num hostel quando podia dormir de borla. Deixámos as coisas em casa e voltámos a sair. A minha irmã ligou para a universidade a dizer que nesse dia não ia estar e que voltaria no dia seguinte. Foi um dia inteiro dedicado aos irmãos. Mostrou-me as redondezas da Rodriguez Penã, a sua rua em Buenos Aires, deu-me a conhecer vários espaços amplos e verdes em plena capital argentina. Sentámo-nos numa esplanada, pedimos umas maravilhosas empanadas e conversámos.


Passámos umas belas horas a conversar enquanto petiscávamos. Acabou por ser um brunch e um lanche ao mesmo tempo, já que não largámos aquelas cadeiras. A conversa fluiu, sem medos, com muitas histórias de cá e de lá e acima de tudo, com um sentimento profundo de que por muito que os irmãos se afastem e a distância seja dura, não há nada mais pleno e autêntico que o seu reencontro.


Buenos Aires é, na minha humilde opinião, uma cidade bastante "europeia". São poucas as zonas da capital argentina onde nos sentimos na verdadeira América do Sul. Talvez a zona do Caminito nos faça sentir a brisa sudamericana com o Tango presente a cada esquina e a abordagem local digna de um acolhedor sul-americano. De resto, toda ela se apresenta muito europeia. Há zonas que nos fazem lembrar Madrid, outras Paris, outras até Lisboa. Não é tão diferente daquilo que eu estava à espera. Foram vários dias a caminhar e a conhecer as zonas mais típicas da cidade. De Recoleta até Palermo e do Retiro até Puerto Madero. Tudo teve o seu tempo de visita.

O calor redobrava com o passar dos dias. Os casacos e as camisolas estavam no armário de casa da minha irmã prontos a ser usados na Patagónia. 


*

 

Após o reencontro familiar, meto-me a caminho até Mendoza onde fico uns dias a explorar as vinhas a cavalo. Depois, parto para Santiago do Chile. A viagem de Mendoza até Santiago acabaria por ser um dos momentos altos de toda a minha aventura pela América do Sul. No terminal de autocarros, dirigi-me à cabine e decidi comprar o bilhete para o primeiro lugar do andar de cima da camioneta. O preço era o mesmo e não pensei duas vezes. Tinha uma janela panorâmica digna de uma moderna sala de cinema que me mostrava tudo aquilo por onde a camioneta passava. Arrumei a mochila e sentei-me.

Ia atravessar a cordilheira dos Andes de autocarro. A viagem ia durar cerca de sete horas sem contar com eventuais atrasos que pudessem surgir na fronteira chilena. Para o Chile não poderia levar comida. Era preciso ter cuidado com a fruta, com os vegetais e com tudo o que levava leite. Faz parte da lei e o Chile tinha restrições para combater possíveis contaminações.

Ao meu lado estava uma senhora chilena que, pela conversa ao telefone, iria regressar a casa depois de uns meses fora. Às vezes gosto de pensar nos regressos e nos reencontros. Gosto de imaginar que, do lado de lá da chamada, estaria um amigo ou familiar ansioso por vê-la de novo. 

Da fronteira até Santiago foi praticamente sempre a descer. Demorámos quatro horas, sendo que, as primeiras duas foram passadas às curvas. Poucas são as palavras que tenho para exprimir aquilo que vivi nessas duas horas. A visão panorâmica do abraço da cordilheira era ímpar e inigualável. Os resquícios de neve que ainda sobravam na montanha de um Inverno preocupado, juntamente com as curvas da estrada pareciam um desenho onde o lápis acompanha a criatividade do artista. 

- Prepare-se. Quem se apaixona pela Patagónia, tem dificuldade em regressar - disse-me a simpática senhora que estava ao meu lado no autocarro. Tinha uma visão serena das coisas. Voltou a atender o telefone para dizer que já estava em terras chilenas. A cada curva olhava para os camiões em curvas mais longínquas. O caminho era lento mas, chegando à base dos Andes, já do lado chileno, senti que aquelas duas horas tinham tido alguma urgência. Tinha acontecido tudo rápido demais. E é sempre assim. Quando o que se vê é bonito, o tempo tem pressa.

Cheguei a Santiago cansado depois de oito horas de estrada e muito alvoroço em tudo o que vira. Era de noite. Peguei na mochila, entrei num táxi e dei a morada do hostel que tinha encontrado para passar duas noites. Era central, estava perto de tudo. Na recepção, fui recebido por uma bonita jovem trabalhadora-estudante que de manhã estudava na Universidade de Direito e à noite recebia hóspedes como eu. Mostrou-me o quarto, deu-me toalhas e orientou-me nas divisões do hostel. Tinha um terraço bem composto com mesas, cadeiras e espreguiçadeiras com vista para a cidade. Agradeci-lhe a visita guiada e instalei-me. Comprei qualquer coisa num pequeno mercado ali ao lado e voltei para cozinhar. Levei a comida para o terraço. Jantei, bebi uma cerveja, fumei um cigarro e deixei algumas notas no meu Moleskine enquanto Santiago, devagarinho, se ia recolhendo. Seria ali, na capital chilena, que ia inspirar fundo pela última vez antes de partir para a minha aventura patagónica.

Levantei-me ainda de noite. Despedi-me da jovem trabalhadora-estudante que estava a acabar o seu turno e segui directo para o aeroporto. Ia voar até Punta Arenas e de lá, um autocarro até Puerto Natales. O avião descolou num ritmo sincronizado com o nascer-do-sol. Para trás ficava Santiago com todas as suas conversas e manias. Olhei pela janela e apercebi-me que estava a chegar o grande momento. A minha aventura pela Patagónia. A minha jornada no Sul do Mundo, sozinho.

Aterrei ao final da manhã. Fez-se um dia bonito em Punta Arenas. Muito ventoso, típico da Patagónia, mas com céu limpo. Ainda esperei umas belas horas no aeroporto.  Cheguei a Puerto Natales ao início da tarde. Tinha a sensação de que a viagem tinha acontecido numa única recta. Uma extensa, morosa e entediante recta. De um lado pasto, do outro…pasto. Desértico com as montanhas afastadas. A viagem foi feita em três horas.

No terminal, dei o nome do meu hostel e procurei alguma orientação. Rapidamente me deram as indicações para sair do terminal e lá chegar sem problemas. Já estava em plena Patagónia, ansioso pelo que estava para vir.
 

*

 

Puerto Natales é uma pacata cidade na Patagónia chilena com pouco mais de dezassete mil habitantes, capital da província chamada "Última Esperança". Banhada pelas águas do Seno Ultima Esperanza, é, para muitos, o principal ponto de partida para entrar no Parque Nacional das Torres Del Paine. 

Ao sair do terminal de autocarros deparei-me com uma quietude há muito não sentida. O sossego da cidade era sentido logo nos primeiros contactos. Não havia gente nas ruas, passavam poucos carros e a única actividade pujante era do vento.

Tinha comigo um mapa oferecido por um funcionário do terminal e não havia que enganar. Seguia em frente, passava cinco cuadras e virava à direita. No início da rua iria encontrar o The Singing Lamb, hostel onde fiquei a dormir três noites. Entrei, algo cansado e sem vontade de dizer muita coisa – pensando bem, tinha despertado ainda em Santiago de madrugada – e encontrei duas simpáticas jovens chilenas que me acolheram com agrado.

Mostraram-me o hostel e onde iria ficar a dormir – numa camarata com nove camas, além da minha. Ao entrar, deixei a mochila junto à cama e tentei fazer pouco barulho. O quarto estava cheio de outros viajantes que repousavam àquela hora da tarde. Apercebi-me que, dentro de uns dias, seria a minha vez de sentir aquele cansaço. De volta à recepção, tentei programar e definir com calma os meus programas para a Patagónia Chilena.


Tratei das papeladas e dos pagamentos e reservei os meus programas. A excursão começava apenas no dia seguinte, bem cedo. Tive tempo de explorar esta simpática cidade de Puerto Natales que tanto abrigo deu ao longo dos anos a caminhantes do mundo à procura da beleza das montanhas. Acomodei-me e saí para procurar comida e um cadeado para o cacifo que ficava na camarata. A cidade era uma espécie de Campo de Ourique em grande escala. Labiríntica mas sem grande margem para errar. Se virássemos na primeira quando seria suposto ser na segunda, não haveria problema, haveríamos de equilibrar e compensar o trajecto na curva seguinte.

Entrei numa minúscula, disfarçada e recôndita loja que vendia tudo e mais alguma coisa, inclusive comida. Não via ninguém do outro lado do balcão. Aproveitei para dar uma olhadela pelo que ali estava exposto e escolher aquilo que iria ser necessário para os dias seguintes. As montras transbordavam produtos. Era prateleiras fartas e empanturradas com enlatados, frutos secos, chocolates, fruta e peúgas quentes. Gosto destas lojas, humildes e cheias de vontade de socorrer o cliente.


*

 

Eram sete da manhã em ponto quando uma van buzina do lado de lá da rua do hostel. Da janela, percebi que me vinham buscar. Saí, dei o meu nome e sentei-me. Era o último passageiro. Dali era seguir directo para as Torres del Paine. Só regressaria ao final da tarde. O vento estava enfurecido nesse dia. As nuvens apareciam e desapareciam com presteza, tal era a fúria.

Encasacado e confortável, sentei-me no lugar à janela. Todo o caminho desde Puerto Natales até à entrada do parque era de cortar a respiração. A meio caminho, parámos para contemplar guanacos, animais da família dos camelos. Havia aos milhares espalhados pelas pastagens de um lado e do outro da estrada. Uma imensidão verdejante polvilhada com estes agradáveis e simpáticos mamíferos. Uns assustavam-se, outros acabavam por acompanhar o trajecto da carrinha até desistirem.


A primeira paragem acontece para o queixo cair com a Laguna Amarga. Nem a ira do vento foi capaz de destruir a paisagem inquietando as águas da lagoa. As montanhas no fundo compunham o cenário. Cada miradouro permitia uma saída para fotografias. Só queria que a minha câmara fosse capaz de captar o mesmo que os meus olhos. Tudo era imponente e monstruosamente deslumbrante. Da Laguna Amarga rumámos ao El Salto Grande, uma cascata enraivecida com a vida mas excessivamente bonita. Para lá chegar tivemos que caminhar muito pouco a pé, um quilómetro apenas. Quilómetro esse lento porque a rajada aparecia-nos de frente.


Ainda tivemos tempo de conhecer outras paisagens e um lago com um nome impronunciável; Nordenskjöld. Isso. Entre coisas sublimes, o tempo correu. Já era hora de almoço quando parámos para comer junto ao Lago del Toro. A cordilheira Paine fazia-nos companhia ao almoço. O vento tinha acalmado e o Sol cumprimentava as Torres. Estive calado a manhã toda. Não conseguia fazer perguntas. Sentia-me no sítio mais bonito do mundo mas tinha o olhar sempre fisgado nas torres ansioso por conhecê-las de perto. Julgo que, nessa tarde, a minha solidão esteve alinhada com a Natureza.

Da parte da tarde fomos conhecer o Glaciar Grey. O vento deixou as tréguas de lado e voltou em força. Com ele, as nuvens e até alguma chuva. Todo o caminho até ao Glaciar foi atroz, dadas as rajadas, mas fez-se.

Pouco dormi nessa noite. Parecia uma criança nas vésperas de Natal. Queria muito estar frente a frente com aquelas torres imponentes. O que Deus ali tinha deixado era perfeito. 

Eram seis da manhã quando o guia me foi buscar à porta do hostel. Juan era o seu nome. Era uma equipa diferente daquela que me levou a conhecer as principais atracções das Torres Del Paine no dia anterior. Mais pequena, mais restrita e mais experiente em caminhadas. O caminho de Puerto Natales até à entrada do parque foi o mesmo, mas desta vez, sem uma única nuvem no céu e com as torres totalmente descobertas.


- Dia perfeito para caminhar! – disse Juan entusiasmado.


Iniciámos aquela que iria ser uma caminhada de dez horas a partir de um refúgio envidraçado onde outros caminhantes se preparavam para outros trilhos. Juan fez um pequeno briefing com o nosso grupo e começámos a caminhada. A subir trabalhávamos cárdio, a descer trabalhávamos músculos e articulações. Os primeiros três quilómetros tinham alguma inclinação, mais à frente iríamos apanhar zonas mais planas e os últimos dois eram fatais para quem tinha pouca experiência nestas andanças – como era o meu caso.

Passados alguns quilómetros, parámos para comer. Cada um tinha a sua mochila e as suas coisas. Parámos quinze minutos para continuarmos num bom ritmo. Tinha fatias de fiambre e dois pães fatiados. Comi uma sandes ali, bebi água e guardei o resto para o almoço. Íamos almoçar na base das torres. Até lá, tínhamos pela frente duas horas e meia de caminho.

A segunda parte do caminho foi feita praticamente toda dentro de um bosque. O Sol ali não chegava, o caminho estava escorregadio e deslizes eram um passatempo. O dia estava limpo mas o bosque mostrava vestígios de dias anteriores chuvosos naquele trajecto. As folhas pingavam e o vento não soprava. Ia demorar até secar. Fez frio nos quilómetros densos por entre a mata.

Já não havia caminho traçado. Apenas umas meras indicações coloridas colocadas nos cimos de cada monte de pedras. Já não estava com o Juan. A maior parte da segunda metade da caminhada fi-la sozinho e dorido. Foi então que, dobrada uma última esquina inventada por calhaus, me deparei com aquele cenário. Uma lagoa límpida, azul e sem agitação aos pés das três torres inteiramente expostas. Não havia nem um sinal de nuvens. O Sol fazia o seu papel e derretia a neve que lhes restava. Todo eu tremia, o meu coração batia a uma velocidade desapiedada e os meus olhos não descolavam das torres. Não se ouvia nenhum barulho. Era o silêncio da contemplação. 
 


*

 

No dia seguinte, despedi-me do Chile. Voltei ao terminal para apanhar um autocarro que iria atravessar de novo a fronteira para a Argentina. Para trás ficava as torres e a sua beleza. Era tempo de conhecer o lado argentino: El Calafate e El Chaltén.

A fronteira estava cheia e a fila demorou três horas nessa tarde. Ao subir de novo para o autocarro, reparei bem nas pessoas que lá estavam sentadas. E todos tínhamos algo em comum: estávamos apaixonados pela Patagónia. Ao sentar-me de novo no banco, encontrei um papel amachucado no chão Apanhei-o e, ao desamarrotá-lo, o acaso deu-me a conhecer um poema de Agustín Torossi do livro Poesia Oblíqua da qual retiro uma parte que me resumiu a minha visita à Patagónia chilena: 

 

Una imagen

Un hombre

En un sendero retirado del campo,

Un sonido imperceptible

En su soledad

Más íntima

Apenas un suspiro.

 

Depois de cinco horas de viagem mais três de fronteira – que estava cheia de gente nesse dia - cheguei a El Calafate. Localizada na província de Santa Cruz, na Argentina, é a cidade mais perto do Parque Nacional Los Glaciares onde fica o Perito Moreno. 

Chegado ao hostel America Del Sur, fui orientado pelo Rúben – simpático recepcionista brasileiro que morava na Argentina já há alguns anos. Depois de me mostrar toda a forma de funcionamento do hostel, apresentou-me os programas que poderia fazer e desfrutar em El Calafate. Expliquei-lhe que queria conhecer as redondezas, o Perito Moreno e El Chaltén. Nessa tarde descansei para recarregar baterias. Foi ali perto do centro, na esquina varela, num bodegón patagónico, que me sentei a escrever enquanto comia uma das melhores empanadas da minha viagem.

Escrevia que me desunhava, tinha muita coisa na cabeça e muita vontade de a pôr no papel. Que desatino. Duas horas e duas empanadas depois, segui caminho para explorar a pequena cidade de El Calafate. 

No dia seguinte, de olheiras até ao joelho, saí para conhecer Perito Moreno. Rapidamente me passou o cansaço quando me coloco frente a frente com aquele majestoso glaciar. Merecedor de respeito e estima, o Perito Moreno estava perfeito para ser contemplado nesse dia. O céu estava nublado, pelo que o Sol não incidia directamente no gelo e não ofuscava quem por lá passava.

Um célebre investigador da região, Francisco Pascásio Moreno, deu nome ao glaciar. Tem cinco quilómetros de largura e sessenta metros de altura. Estende-se desde a fronteira da Argentina com o Chile até ao braço sul do lago argentino e deixa qualquer um de boca aberta. Ao longo dos anos foram sendo construídas várias estruturas para que os turistas pudessem apreciar a beleza daquela que já foi considerada a oitava maravilha do mundo. 

 

*

 

El Chaltén é o sossego e a pacatez sob a forma de uma cidade. No Inverno, há pouco mais de quinhentos habitantes. Com a Primavera chegam mais uns quantos mas não damos por eles. De El Calafate até El Chaltén ainda foram umas belas horas com o Lago Argentino sempre presente no caminho. Chovia bastante no meu último dia de exploração. Como era "ir e vir", tinha pouco tempo para conhecer os grandes trilhos da capital do trekking. Tive pena. Mas há sempre um regresso possível.

Chegados ao terminal de autocarros de El Chaltén, um guia explicou-nos o que poderíamos ver com aquele dia cinzento e chuvoso. Havia trilhos de duas horas; uma para ir e outra para voltar, dando para conhecer o miradouro dos cóndores e o Chorillo del Salto, uma cascata escondida no meio do bosque.


Trilhos até às lagoas mais longínquas para ver o Fitz Roy seriam impossíveis nesse dia. No entanto, o trilho até à Laguna Torre seria praticável fazer. O guia disse que demoraria cerca de oito horas, dezoito quilómetros, ir e voltar. Estava com o tempo apertado dada a hora que o autocarro regressava a El Chaltén e assumi: vou conhecer os lugares mais próximos da cidade. Ainda nos alertaram para não darmos comida aos cães ali abandonados. Porque caso o fizéssemos, não éramos nós que estávamos a adoptar um cão mas sim o contrário: agrafavam-nos com pouca intenção de largar. E se fossem a caminhar connosco pelo bosque, a certa altura poderiam fartar-se e, querendo voltar para trás, não sabendo o caminho de volta, poderiam morrer à fome, perdidos.


Depois do briefing, era cada um por si. Saí do terminal e pus-me a caminho. Distraído como sou, fui capaz de me perder nos poucos cruzamentos que havia e depois de muito andar pela cidade, dou de caras com uma placa que diz: Trilho Laguna Torre. Não era o que queria. Era o que temia. Respirei fundo mas não pensei duas vezes: algo ou alguém quis que me cruzasse com aquela placa. Dei corda aos sapatos e fi-lo com um olho no caminho e outro no relógio. 

Acelerei o passo e depois de ultrapassada muita vegetação sem me ter cruzado com uma única pessoa, vejo uma placa que diz: Laguna Torre – 3km. O tempo tinha passado por mim sem me dizer nada, num ápice. As minhas pernas tinham caminhado sozinhas, quase como habituadas a grandes caminhadas e acabei por encontrar mais uma encantadora, deslumbrante e sossegada lagoa com pedaços de gelo vindos do glaciar mais próximo ainda a boiar.


Ali almocei, sozinho, a sentir o vento chegar deixando descoberta a montanha que apadrinhava a lagoa. Ao longe, aproximava-se um patagónio a cavalo. Chegou-se perto e disse:


- Tenho para mim que você será o único visitante da lagoa de hoje.

- Porquê? O tempo está a ficar bom. Veja, a montanha está praticamente descoberta e visível.

- Está. Aqui. O caminho até cá é doloroso debaixo de chuva e vento.

- Doloroso? Não senti, senhor.

- Talvez esteja habituado, jovem. Mas nos dias tristes de El Chaltén, poucos se aventuram até à Laguna Torre.

- O senhor de onde vem? – perguntei.

- Vim da montanha.

- Mas onde mora?

- A morada é algo muito relativo, jovem. Se me pergunta onde está a minha casa, respondo-lhe que está em El Chaltén, na vila.

- Então porque vem da montanha?

- É lá que moro.

- Creio não estar a perceber, senhor. Desculpe.

- Onde moramos não tem que ser necessariamente onde está a casa. A casa é uma estrutura. É pedra, madeira, cimento. É material. A morada é onde nos sentimos plenos.
- Então o senhor é feliz na montanha.

Segurando novamente nas rédeas do cavalo e virando costas com um sorriso, afastando-se, ainda se despediu:

- Até à vista, jovem. Encontre a sua morada…

Olhei para o relógio, assustei-me e em tudo o que era descida possível, corri para ganhar tempo. O caminho de volta era exactamente o mesmo. Ao chegar de novo a El Chaltén, apercebi-me que o autocarro só partia dentro de uma hora. Suspirei de alívio recordando a inquietação inicial tendo-me proposto a conhecer apenas o Chorillo Del Salto naquelas horas. Num bar ali perdido, enquanto esperava, bebia mate e pensava no inesperado patagónio da montanha. No meio de tantas mentiras que os patagónios contavam para se entreterem, uma voz interior martelava-me o pensamento com uma verdade absoluta: "Na vida, quando achares que não vai dar…vai dar".

De volta a El Calafate, sentei-me na cadeira à janela e de repente, naquelas horas, passaram-me todas as imagens de coisas bonitas que havia visto nos últimos dias. A arduidade das subidas, a retribuição das paisagens, a bondade das pessoas e a superação. 

 

*

 

Despedi-me da Patagónia com algum aperto, saudade e de garganta travada. Foi-me difícil levantar voo. Compreendi pela primeira vez, de forma nítida, a paixão de que me falavam. Pelo que havia visto e pelas pessoas conhecidas. Pela bondade de quem me recebeu e pela aceitação pura da Natureza. Voltei a Buenos Aires. Reencontrei a minha irmã, partilhei o que vira, contei quem tinha conhecido. Voltei a estar em espaços que já tinha conhecido anteriormente, voltei a ouvir o som das ruas, dos vendedores ambulantes e dos kioskos e apercebi-me que, ao viajarmos durante algum tempo, quando regressamos, não há nada de diferente a não sermos nós e a nossa percepção das coisas, a nossa morada. A vida corre igual, numa compreensão diferente da nossa parte, porque ganhámos algo nessa viagem que não conseguimos decifrar.


Levei dois dias para arrumar tudo e para um abraço. Da Rodriguez Peña, onde ela vivia, até ao aeroporto era preciso apanhar um autocarro. Lá ia eu, mais carregado do que na chegada, tanto na mochila como no coração. Era o único passageiro daquele autocarro. Tive a sensação de que só eu me ia embora, só eu voltaria a casa, só eu estive em viagem. O motorista aproveitou a quietude do trabalho para meter conversa com o único passageiro que levava:

- De onde é, amigo?

- De Portugal, regresso hoje.

- Esteve só por aqui?

- Não, estive aqui, no Chile, na Patagónia, por aí…

- Que maravilha! Não há lugares como esses!

- Pois acho difícil.

Aquele encarquilhado senhor ia desabafando sobre o trabalho, sobre a monotonia das coisas e a vontade de viajar mais.

- Passo a vida em contacto com pessoas que viajam, mas eu ando aqui às aranhas. Um dia ponho-me a andar.

- Arrisque – disse-lhe
- Acredite, um dia largo tudo e pego numa mochila igual à sua.

Ao chegar ao aeroporto, despedi-me do motorista, agradeci-lhe e desejei-lhe sorte e coragem para pegar na mochila e conhecer o mundo. Ele despediu-se de mim com um sorriso e desejou-me algo ainda melhor:


- Qué tengas una buena vida!

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