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Reportagem: Pelas montanhas do Grande Cáucaso, parte I

Porquê sempre optar pelo desconforto? Porque só assim se olha e agradece o resto.

Gonçalo Câmara

Chego a Tbilisi depois de dois voos chatos que não atam nem desatam. Nem longos nem curtos. Três horas num, quatro no outro. Não há filmes, não servem comida, as cadeiras pouco inclinam. Há que matar o tempo com o pensamento. 

Chego de madrugada à capital da Geórgia, ponto de partida para a viagem pelas montanhas. Tempo para recarregar baterias e preparar os pés e a cabeça. 

Lasha é o motorista que me leva de Tbilisi até Mestia numas pouco agradáveis onze horas de caminho num carro híbrido que avaria a meio com um problema no gás. Lasha pede desculpas de cinco em cinco minutos mas não tem que se preocupar. Mal sabe ele que o passageiro adora imprevistos de viagem. Curvas, contra-curvas, estradas absolutamente danificadas, outras em construção. Uma verdadeira epopeia de onze horas que termina em Mestia, a cidade dos caminhantes, a mais conhecida da região de Svaneti. Chego moído mas vivo.

Svans. Nascidos e criados na Montanha. Uma criança grita por maçãs à mãe que está no mercado enquanto o pai a segura. Fim de dia, a fome aperta e a boa disposição é volátil. Aproximo-me para fotografar. Não percebo o que o pai me diz mas agradece como quem agradece a salvação de uma birra iminente.

Faz frio lá fora, o hostel é quente e confortável. A senhora que me serve o pequeno-almoço é mãe de cinco filhos e entre birras e pedidos de última hora ainda tem tempo para me preparar comida para levar para as caminhadas. 

Saio sempre bem cedo para aproveitar o dia. O primeiro destino são os lagos Koruldi numa caminhada de vinte quilómetros com subidas íngremes e que me levam até aos três mil metros de altitude. O ar começa a ficar rarefeito, não encontro outros caminhantes na maior parte do trilho. Cruzo-me com um grupo de bielorussos que descansa em vista para o Monte Ushba. 

Depois de umas paragens para pequenos goles de água prossigo até aos lagos e mais acima um pouco. Não há nada mais. Silêncio e um trabalho bem feito que nos faz perceber porque Deus precisou de descansar ao sétimo dia. 

O que se segue é o Glaciar Chalaadi. Quem sobe comigo é um jovem estudante iraniano de 18 anos que trabalha na recepção de um hostel local. Sobe de chinelos e tem as respostas todas na ponta da língua. É daqueles que sabe pouco sobre tudo e faz por querer saber mais ainda. 

Nima parece-me sensato, lúcido, sabendo do que quer para o seu futuro. E o seu futuro passa pela montanha. Há algo no seu discurso que me fez parar por um bom bocado: se queres conhecer um lugar, há que deixar bem claro que levas também um lugar contigo até lá. Que coisa extraordinária.

Se a capital da Geórgia é acelerada e dinâmica, o mesmo não se passa aqui pelas montanhas. No caminho até Ushguli, vou percebendo como o tempo não passou por aqui. Não há vivalma nas estradas de terra batida. Lenhadores estão recolhidos a beber Shasha para aquecer a alma, agricultores estão nos prados ao longe a tratar do seu sustento. Pastores há poucos, com muito para cuidar. 

Toda a vista tem como pano de fundo as montanhas e os caminhos até aos glaciares. Quando o vento sopra tremem-nos os ossos. Há que comer e beber para sobreviver. A comida georgiana é bastante condimentada, os vegetais são frescos e bem cozinhados, o queijo de Svaneti é algo de divinal e os estufados são deste e de outro mundo. 

Desta região de Svaneti voltarei à capital para prosseguir viagem até Kazbegi, uma zona com visão panorâmica sobre as montanhas e sobre o Monte Kazbeg. Esperam-me oito horas de caminho com a mochila no tejadilho de uma Marshrutka antiga apinhada. Porquê sempre optar pelo desconforto? Porque só assim se olha e agradece o resto. 

Até já. 

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