Ouça a M80, faça o download da App.
PARTILHAR

Viagem a Marrocos: dos dromedários ao chá de hortelã

Fazer do deserto uma metáfora futebolistica com os últimos anos da seleção marroquina é tentador. Cabe aos jogadores evitar isso.

Gonçalo Palma

O país desértico dos dromedários e do cuscuz tem uma riquíssima civilização de que se deve orgulhar. No que respeita à seleção marroquina de futebol, a surpreendente participação no México ’86 continua a ser uma boa e demasiado isolada memória.

Nação de imigrantes
A atual seleção marroquina de futebol é um retrato da dispersão de marroquinos pelo mundo. Muitos dos jogadores da equipa A nasceram e cresceram em países europeus e da América do Norte. Agregados com a camisola vermelha de Marrocos, obtiveram um apuramento calmo, sem grandes adversários. Um dos jogadores com melhor currículo e de grande peso na seleção marroquina é Achraf Hakimi, o lateral direito do Paris Saint-Germain. Outras das mais-valias são o guarda-redes títular do Sevilha, Bounou, o médio defensivo da Fiorentina, Amrabat, e o centro-campista do Angers, Ounahi, que faz as ligações quase todas da equipa. Mas estas são armas demasiado modestas para enfrentar as seleções da Bélgica e da Croácia no Grupo F. O envelhecimento destas duas equipas europeias e a menor experiência do Canadá podem, no entanto, alimentar as esperanças marroquinas de uma campanha mais longa do que a de há quatro anos.

O sonho de 1986 (o nosso pesadelo)

A maior jornada de glória do futebol marroquino e da sua seleção é precisamente o nosso maior pesadelo. A 11 de junho de 1986, no terceiro e decisivo jogo da primeira fase do Mundial de México '86, os marroquinos desfazem a fortaleza portuguesa, com três bombas sem defesa possível para Damas, que nem o golo em arte de Diamantino menorizou. Foi uma madrugada azeda para Portugal, que agigantou o monstro do caso de Saltillo e da ameaça de greve dos nosso futebolistas da semana anterior. Mais a sul, foi uma festa nos cafés das cidades marroquinas, celebrando-se o feito inédito de serem a primeira equipa africana e, simultaneamente, a primeira nação árabe a qualificar-se para uma segunda fase do Mundial de Futebol. O herói desta campanha estava na baliza e chamava-se Zaki, que defendia tudo. Só não contava com uma barreira que se desformou num livre direto do alemão Matthäus que estancou nos oitavos-final a caminhada memorável da seleção norte-africana.

A nível de troféus, Marrocos pode vangloriar-se de um título de campeão africano conquistado em 1976. A nível clubístico, é em Marrocos que está o atual campeão africano de clubes, o glorioso Wydad Casablanca, já com dois títulos continentais, menos um que o rival Raja Casablanca, o mais titulado internacionalmente. O FAR Rabat é o outro clube marroquino que saboreou um título de campeão africano.

Por Portugal têm passado vários jogadores marroquinos. Apesar de intermitente, o extremo Tarik Sektioui mostrou no FC Porto a sua arte técnica no Dragão há cerca de dez anos. Foi um dos poucos que fez rir o sorumbático técnico Jesualdo Ferreira. O lateral-direito de boa memória Saber foi campeão pelo Sporting em 1999-2000. O mesmo já não pode reclamar o central leonino Naybet, mesmo que tenha jogado na grande formação dos anos 90 de Luís Figo. No Benfica, o centro-campista Hajry era mais discreto mas teve um momento de exposição mais inusitado quando converteu com categoria um dos penáltis do Benfica na final da Taça dos Campeões Europeus em 1988 contra o PSV Eindhoven. Foi ao Farense que se ligou mais, o clube onde brilharia durante vários anos o ponta-de-lança Hassan, que com 21 golos e o título de melhor marcador em 1994-95, daria nessa época a melhor classificação de sempre ao clube algarvio: um europeu 5º lugar.


Maratonas musicais
O escritor norte-americano William Burroughs chamou aos Master Musicians of Jajouka "a banda de rock & roll com mais de quatro mil anos de história". Graça ao contacto deste poeta da Beat Generation e às gravações com músicos forasteiros como Brian Jones dos Rolling Stones ou o saxofonista de free-jazz Ornette Coleman, este coletivo de músicos das montanhas marroquinas ganhou uma reputação internacional mítica. O grupo com muitos séculos de existência, que tocava para sultões, subdividiu-se em dois Master Musicians (os que pronunciam Jajouka e os que dizem Jojouka). Ambos os grupos têm um entendimento musical diferente do ocidental, muito para além das convenções dos concertos de duas horas. São maratonas musicais de muitas mais horas, com o instrumento de sopro rhaita em delírio.

A música marroquina vive muito das vibrações sensoriais, em notas contínuas, a que chamamos trance (fora do contexto da eletrónica). É muito tocada em cafés mas também em rituais religiosos, como casamentos ou em rezas por chuvas. Há muita percussão: muitas palmas, sinos, pratos e batucada arábica no tambor de nome darbuka. Também habita na música marroquina o kanun, um instrumento de 70 cordas comum no mundo árabe, e o rebab: espécie de violino marroquino mas mais arcaico. Há uma série de festivais e de rituais de cante e dança por todo o país, sempre muito acompanhados por flautas (neys) e tambores (bendirs). De todos esses eventos, o maior é o Festival de Música Sagrada de Fez.


Reino do açafrão e da canela
A gastronomia marroquina começa nas praças, naqueles mercados repletos de aromas diferentes. Nas casas, as mesas baixas (chamadas de madas) estão recheadas de acompanhamentos, como saladas adocicadas, aromatizadas por águas perfumadas em pétalas de rosa ou flor de laranjeira destiladas em alambiques. Mas o líquido mais famoso é o chá de hortelã, servido em pequenos copos inclinados chamados de kisan dail atai. Enche-se os copos majestosos de folhas de hortelã e de açúcar. Nas viagens pelo deserto, é também muito comum levar-se chá de hortelã em garrafas. Mata sempre a sede, esteja quente ou não.

O cuscuz (sêmolas prensadas e granuladas que vemos habitualmente nos nossos supermercados e não só nos biológicos) dá nome a um dos pratos marroquinos mais famosos, coberto de várias carnes e vegetais. Outra coisa que dá nome a vários pratos é o tayin, uma caçarola de barro típica do país onde se fazem os guisados. Nesses guisados há uma predileção evidente pelas carnes, em detretimento do peixe, apesar da vasta costa que ocupa o Atlântico e o Mediterrâneo. O povo come acima de tudo carne de cordeiro e de frango, mas também de dromedário e de pomba. Mas há um guisado de peixe com mexilhões, batatas e ovos, popular nalguns locais, chamado traga.

As pastilas também são muitos recorrentes na cozinha marroquina. Tratam-se de empadas em massa fina (brick) que podem levar tanto carnes como peixe. Já a adafina é o grande cozido marroquino, com muita carne de vaca, batata e grão-de-bico. E a harira é a grande sopa marroquina, comida sobretudo durante as noites do Ramadão, bem robusta, composta de carne de vitela, lentilhas, grão-de-bico e muitos tomates, devidamente condimentada de açafrão, pimenta, coentros e salsa. Na doçaria, os yabans têm fama. São uns doces de amêndoa e de goma arábica muito servidos à porta das escolas.


Oásis cultural
Portugueses e berbéres marroquinos já trocaram muito sangue derramado, quer na reconquista cristã da Península Ibérica na época medieval, quer na tentativa de domínio de praças marroquinas quando Portugal tinha o projeto ultramarino.

Hoje o reino marroquino é para nós um local deslumbrante de aventuras, nomeadamente para os amantes do deserto, graças ao enorme Sahara, ou para nos silenciarmos de admiração com cidades como Marraquexe e com a sua arquitetura deslumbrante de arcos, mesquitas, madraças e afins. Quem gostar de montanhismo pode arriscar as vertigens de picos de montanhas tão altos como os Alpes, como na Cordilheira do Atlas.

Este país de nómadas e dromedários tem atraído a cultura forasteira. "Casablanca" (de 1942), contracenado por Ingrid Bergman e Humphrey Bogart, é o maior clássico cinematográfico sobre a II Guerra Mundial. O escritor norte-americano Paul Bowles escolheu viver grande parte da sua vida em Tânger: a residência marroquina influenciou alguns dos seus maiores livros como "O Céu Que Nos Protege" (de 1949, sobre uma viagem ao Sahara) ou "A Casa da Aranha" (sobre o choque cultural entre os colonizadores franceses e os marroquinos colonizados).

É no atletismo que Marrocos mais se tem destacado desportivamente, com vários campeões olímpicos. A corredora dos 400 metros obstáculos Nawal El Moutawakel tornou-se em 1984 na primeira campeão olímpica árabe africana. O mais glorioso é o bicampeão olímpico El Guerrouj nas distâncias de 1500 e 5000 metros, em 2004. Soufiane El Bakkali é o atual campeão mundial e olímpico dos 3000m obstáculos. Mas o mais emblemático continua a ser Saïd Aouita, que na final olímpica dos 5000 metros, deixou para trás o espinhense António Leitão (que ficou em 3º), para o seu único ouro nos Jogos Olímpicos de 1984.