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Viagem ao Canadá: dos índios aos inuits

Mais habituados ao hóquei no gelo, os canadianos não querem ir já "de patins" na primeira fase do Mundial de Futebol.

Gonçalo Palma

A seleção masculina de futebol volta ao Mundial de Futebol 36 anos depois, com um pensador em campo que os portistas conhecem bem: Eustáquio. Mas enfiada num grupo onde há favoritos como a Bélgica (3ª no Mundial de 2018) e a Croácia (finalista do Mundial de 2018), vai ser difícil encontrar uma vaga nos oitavos-de-final.


Os melhores lá da zona
Os canadianos terminaram em 1º lugar o grupo de apuramento da CONCACAF, à frente dos favoritos México e Estados Unidos. Quem mexe com a engrenagem toda da formação é o médio defensivo do FC Porto, Eustáquio, que pensa o jogo da seleção. Mas há outros jogadores ao serviço do Canadá, com rodagem ao mais alto nível europeu. O esquerdino Alphonso Davies, titular do Bayern de Munique, dá a vertigem necessária ao ataque canadiano, para agradecimento do ponta-de-lança do Lille, Jonathan David, muito bem classificado na lista dos melhores marcadores da Ligue 1, quase a apanhar as estrelas do Paris Saint-Germain, Mbappé e Neymar. O guarda-redes do Estrela Vermelha, Borjan, é o dono da baliza da seleção. Além de Eustáquio, há ainda um outro lusocanadiano a jogar sempre no 11 inicial: o central do Chaves, Steven Vitória (já com 35 anos e um passado que inclui a passagem pelo Benfica). Eustáquio e Steven Vitória têm feito toda a sua carreira clubística em Portugal, mas as origens de ambos no Canadá conferem-lhes aval para representarem a melhor seleção da CONCACAF.

 

Do indoor soccer para o relvado do Mundial numa só viagem
O desporto-rei no Canadá é o hóquei no gelo. Tirando o mini-torneio olímpico de 1904 (que praticamente não conta), a seleção de futebol do Canadá viveu na insignificância. Só a meio dos anos 80 deu um ar de sua graça, graças a um treinador inglês, Tony Waiters. Este homem conseguiu formar uma equipa nacional de futebol de 11, recrutando-os sobretudo à extinta liga norte-americana de indoor soccer, praticada em pavilhões de basquetebol e de hóquei no gelo. Levou o Canadá aos quartos-de-final dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, e à surpreendente estreia no Mundial, no México '86. A adaptada seleção não fez um único ponto, nem um único golo. Mas escapou às goleadas que se previam, sobretudo contra a poderosa França de Platini, que só marcou o único golo aos 78 minutos, por intermédio de Papin. Depois desta aventura no mundo profissional do futebol ao mais alto nível nas terras tórridas do México, a seleção do Canadá voltou à sua longa obscuridade.   

Há contudo uma curiosidade. O melhor goleador de sempre em seleções séniores não é Cristiano Ronaldo, mas sim uma mulher, que é canadiana, Christine Sinclair, com 190 golos pela seleção do seu país. No futebol feminino, o Canadá é bem mais afirmativo no contexto internacional. 

 

Com gelo na venta
Grande parte do país tem como língua materna o inglês. O domínio enraizado desta língua universal facilitou a consagração a um nível planetário de vários músicos canadianos. Muitos deles fazem parte da iconografia histórica, como o cavalheiresco Leonard Cohen, um poeta que se alongou, e muito bem, na arte cancioneira, primeiro na vertente acústica mais etérea, depois num corpo intrumental mais engalanado. Joni Mitchell foi outro símbolo dos anos 60 que foi sobrevivendo com uma discografia fenomenal, a picar na folk, no rock e no jazz. Outro astro com os dois pés em vários lados é o incansável rocker Neil Young, uma fera de palco que há mais de cinquenta anos vive nos Estados Unidos, mas sempre que o seu ativismo se torna incómodo, alguns políticos de Washington tentam descredibilizá-lo, lembrando que ele... é canadiano (estrangeiro, portanto).   

Mais de cinquenta anos antes do fenómeno teen pop de Justin Bieber (hoje uma estrela consagrada), outro canadiano saboreou o que é se tornar um adolescente mediático, falamos de Paul Anka e do seu sucesso comercial a alta escala nos anos 50. Nos anos 80, já um homem feito, Bryan Adams afirmou-se como um dos heróis rock, criando malhas como 'Summer of 69' ou 'Run to You', que o grande público português encaixou nos seus gostos. Nos anos 90, a escadaria da glória foi subida por Alanis Morissette, por intermédio do seu álbum "Jagged Little Pill". Também numa vertente mais rockeira, Avril Lavigne, ou a descair mais para a pop e o country, Shania Twain, são outros nomes femininos do Canadá a conquistar as grandes arenas. Mais empenhada nas baladas pop, Celine Dion é uma das grandes celebridades do país. Da comunidade lusitana, surgiram canadianos famosos no mundo como Nelly Furtado ou Shawn Mendes. Num plano mais senhorial de cantor de jazz, Michael Bublé tem também a omnipotência de atuar onde quiser, tal como a pianista Diana Krall. The Weeknd está a ter um forte impacto artístico no r&b, enquanto que o rapper Drake não pára de bater recordes de streams no mercado digital.

Dentro do mundo indie, dificilmente os Arcade Fire não são cabeças-de-cartaz nos festivais onde tocam. A banda de Win Butler e de Régine Chassagne é o nome mais emblemático de um país fértil em bandas de rock alternativo de referência, como os supergrupos The New Pornographers e Wolf Parade (ambos conciliadores de grandes egos), embora menos populosos do que os Godspeed You! Black Emperor, um numeroso coletivo de rock instrumental com vistas para a música contemporânea e que conquistou algum culto. Os Viet Cong tornaram-se os Preoccupations sem perderem o frenesim elétrico, já os Destroyer preferem o charme mais intimista. O mundo alternativo canadiano também dá cromos em nome próprio de respeito, como o versátil pianista Patrick Watson, o peculiar Mac DeMarco ou a festiva Feist. Os Cowboy Junkies levantam no rock a consciência country que existe também no Canadá, algo que K.D. Lang também tem no seu estilo particular. No mundo lá mais dentro do country canadiano, a dupla Ian & Sylvia encantou o país enquanto o seu casamento durou. Outra grande dupla vocal foram as irmãs Kate and Anna McGarrigle, numa folk mais apianada. 

Oriunda da comunidade índia, a cantora folk Buffy Sainte-Marie tem sido um exemplo de heterogeneidade e de transformação. De outras comunidades indígenas, os esquimós, mais propriamente os inuits, vem a tradição do katajjaq, um throat singing em que um par de cantoras faz um face-a-face numa troca acesa de sons guturais. Tanya Tagaq tem feito um notável percurso a mostrar esta técnica, sem par. No seio da folk francófona do Quebeque, os La Bottine Souriante são um dos nomes incontornáveis. Na folk de origem celta por parte das comunidades irlandesas e escocesas imigradas, a vocação do violino que inspira bravas danças teve como um dos gigantes Rufus Guinchard. Já no piano, há alguns músicos a ter em conta, como no jazz, Oscar Peterson, ou dentro da clássica, Glenn Gould. Por trás do vidro da cabina do estúdio, o músico canadiano Daniel Lanois tem sido um grandes produtores da música popular, tendo trabalhado com nomes como os U2, Bob Dylan, Peter Gabriel ou Sinéad O'Connor.

 

Tratado anglo-francês à mesa
Os hábitos alimentares dos canadianos são similares às dos seus vizinhos dos Estados Unidos. Também comem perú assado em dias religiosos e não escapam à cultura do fast food. Mas quer na costa, quer nas terras de pasto, o Canadá tem extensão territorial quanto baste para dar ótima matéria prima ao mundo, como o caso do nosso conhecido bacalhau da Terra Nova, que os pescadores portugueses conhecem bem há mais de cinco séculos. Mas o Canadá dá também salmão, o bacon de Ontario ou o xarope, de origem índia e que vem de uma folhagem de ácer – a folha da bandeira canadiana vem mesmo dessa árvore. O xarope é deitado sobre as panquecas, que os canadianos tanto gostam e que tantos tipos têm inventado.  

A cozinha canadiana é um misto das influências das antigas metrópoles imperiais de Inglaterra e de França. É desta última potência colonial que vem a influência na gastronomia do Quebeque, como o caso do soupe aux gourganes (de favas), que se tornou uma sopa canadiana, ou o coq au vin. Há um snack que se tornou popular no Canadá, de influência do Quebeque, falamos do poutine, que é um pratinho de batatas fritas coberto de queijo derretido e de molho de carnes, que pode ser servido em qualquer lado: num balcão de um bar, numa cadeia de fast food ou numa rua. As sandes de carnes fumadas parecem menos tentadoras, mas os canadianos adoram-nas. No capítulo das pies ou das empadas, popularizou-se no Quebeque o pâté au saumon e, sobretudo, a tourtière, com carne, vegetais e especiarias, que era muito comido na época festiva, mas reconhecido hoje como demasiado saboroso para se reduzir a um prato sazonal. Voltando às entradas, sobressaem as fiddleheads, que são vegetais encaracolados, que são grelhados. 

Os canadianos também gostam de doces. Produzem-se butter tarts aos montes: são pasteis arredondados, que envolvem manteiga (como diz o nome), xarope e, claro, ovos e açúcar. Mais aparatosos são os nanaimo bars, feitos de várias camadas, de chocolate, de côco e de crumble. Para que não haja dúvidas quanto à sua nacionalidade, algumas casas comerciais enfiam mesmo um palito no doce com a bandeirola do Canadá.

Tal como os britânicos, os canadianos gostam de beber chá com leite. Nos antípodas térmicos do chá, os canadianos inventaram a ice beer, ou cerveja gelada, através da marca Eisbock. Já que se fala de bebidas geladas, há um cocktail canadiano mais conhecido: o avermelhado e salgado Caesar, uma mistura de vodka com sumos de limão e de tomate, pingos de azeite, de tabasco e de molho inglês, num copo alto e grosso, decorado fotogenicamente com adereços para vários gostos: pode ser uma rodela de limão, um palito de azeitonas, umas folhinhas de salsa ou até um camarão. 

 

A Europa da América
O Canadá, quando comparado com os Estados Unidos, é mais europeizado, com um sistema de saúde pública gratuito e mais liberal a nível de direitos (foi um dos primeiros países do mundo a permitir o casamento de pessoas do mesmo sexo). Os trabalhadores canadianos têm mais tempo livre. Há duas línguas principais: o inglês e o francês. E usa o sistema de medição métrica da Europa, ao contrário dos Estados Unidos. Os canadianos são reconhecidos como tendo um trato mais cordial e falam a um volume sonoro mais baixo, quando comparados com os cidadãos da nação vizinha.

Uma grande atração liga os Estados Unidos ao Canadá, as monumentais Cataratas do Niagara. Mas lá dentro do Canadá, não é só o sistema social ou o trato que são mais europeizados. Nalguns locais, parece realmente estarmos na Europa, como Old Quebec, uma das cidades mais antigas da América do Norte, com mais 400 anos e uma atmosfera antiga rara para aquela zona do planeta, com o seu Chateau, as suas calçadas, as suas igrejas, os seus hóteis-palacetes. Parece que estamos na Suíça ou em França, e não na América do Norte. O Canadá também tem a sua Notre-Dame, a deslumbrante Cathedral-Basilica of Notre-Dame de Québec, Património Cultural da UNESCO. Mas como não se pode tirar o Canadá da América do Norte, há curiosas cidades que nos fazem imaginar um western invernoso, como Dawson, erguida na Corrida do Ouro de Klondike no final do século XIX, e não muito longe do Alasca, que resiste como uma cidade-museu, com aqueles casebres de beleza efabulada. Depois há toda uma fauna selvagem que vale a pena descobrir. Quem for às paisagens montanhosas e glaciares de Banff National Park, cheia de água (em cascatas ou em lagos), pode dar de caras com ursos, pumas, alces ou carneiros selvagens. Para ver cavalos selvagens, é preciso voar de avioneta até à ilha de Sable, que é um corredor de areia no meio do Atlântico. Para observar ursos polares e belugas (ou baleias-brancas), há que viajar até Churchill, na Baía de Hudson.

Nas aventuras no grande ecrã, mesmo que com a marca de Hollywood, há alguns atores canadianos que se têm destacado e que todo o mundo conhece, como Keanu Reeves, o cómico Jim Carrey ou o famoso viajante no tempo (através do "Regresso ao Futuro"), Michael J. Fox. Outro viajante é o cineasta canadiano James Cameron, que se tornou no primeiro homem a descer sozinho até ao fundo mais fundo dos mares, na Fossa das Marianas, num mergulho de 11 quilómetros que durou mais de duas horas e meia, em 2012. Nos anos 90, foi ao fundo mar, para ficcionar "Titanic", sobre o trágico naufrágio de 1912, num filme que se tornou um êxito comercial estrondoso, tendo igualado o recorde absoluto de 11 Óscares. Outros grandes cineastas canadianos preferiram continuar a viver no seu país, e não emigrarem para Hollywwod, como um dos grandes mestres do sci-fi, David Cronenberg (autor de filmes como de culto como "Videodrome", "Irmãos Inseparáveis" ou "Crash"), ou Atom Egoyan (realizador de "Exotica"). Por falar na grande tela, é dos canadianos a invenção da tecnologia de ponta IMAX. Já inspiraram filmes os livros de Margaret Atwood, uma das grandes escritoras da literatura canadiana, tal como Alice Munro, especializada nos contos e que se tornou na única figura canadiana a vencer um Prémio Nobel da Literatura. De um geração mais recente, Yann Martel é um dos grandes escritores canadianos da atualidade, autor de "Life of Pi", adaptado para o filme premiado de Ang Lee.

A grande paixão desportiva dos canadianos é o hóquei no gelo, onde são historicamente os melhores do mundo, apesar da forte concorrência de outros gigantes. A seleção masculina foi 27 vezes campeã mundial e nove vezes campeã olímpica, num palmarés sem paralelo. Alguns dos melhores da liga norte-americana profissional NHL são canadianos, como Wayne Gretzky (ativo entre 1979 e 1999), considerado por muitos como "o melhor hoquista de sempre", ou Gordie Howe, o "Mr. Hockey" (com uma longa carreira entre 1946 e 1971). A seleção feminina de hóquei no gelo é a atual campeã olímpica e mundial, com jogadoras de topo que já estão na história como Brianne Jenner ou Mélodie Daoust. O hóquei no gelo não é evidentemente o único desporto de inverno onde Canadá sobe ao pódio olímpico, como bem demonstra o quadro geral de medalhas. Só para dar um exemplo recente, o campeão do mundo Mikaël Kingsbury tem dominado o esqui em estilo livre, tendo ganho este ano uma medalha de ouro olímpica. A derrubar fronteiras entre desportos de inverno e desportos de verão, temos o caso paradoxal de Clara Hughes, medalhada olímpica tanto no ciclismo, como na patinagem de velocidade (onde chegou a ser campeã olímpica). Na história do desporto canadiano está o velocista e recordista mundial dos 100 metros, Donovan Bailey, que foi bicampeão olímpico em 1996. Noutras pistas e a uma velocidade mais motorizada, Jacques Villeneuve foi campeão do mundo de Fórmula 1 em 1997 (um feito inédito para o país). Se no inverno, as atenções dos canadianos estão focadas no hóquei no gelo, no verão é o lacrosse que mexe com os corações, um jogo muito popular na América do Norte, jogado num relvado, com paus com rede e uma bola à volta de balizas pequenas.