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Viagem ao Catar: dos grãos de areia aos grãos de café

Os cataris são reconhecidos pela simpatia. Mas a sua seleção de futebol quer ser bem mais do que uma boa anfitriã.

Gonçalo Palma

Quem tem dinheiro, tudo pode. Mesmo com um pequeníssimo território (um dos mais pequenos da Ásia) e sem historial futebolístico, o Catar conseguiu tornar-se no primeiro país do Médio Oriente a organizar um Mundial de Futebol... Nem que tenha que ser na época invernal (algo inédito na maior competição da FIFA), para contornar o tempo tórrido do verão. 
 
Atuais campeões da Ásia
A três anos de se estrear num mundial de futebol, a seleção catari viveu a sua maior glória de sempre, quando se tornou pela primeira vez campeã asiática. Um dos heróis foi Almoez Ali, melhor marcador desse Campeonato Asiático de 2019, com um registo impressionante de nove golos.
Apesar da proeza continental, não são propriamente um país exportador de futebolistas. Têm dinheiro de sobra para os manter no país, mas não têm sobra de talento para atrair outros mercados. Todos os internacionais A jogam na liga interna, incluindo Almoez Ali. 
O Catar é o primeiro país árabe anfitrião de um Mundial de Futebol. O factor casa e um grupo modesto onde só há um tubarão, a Holanda, alimentam a verosimilhança de um apuramento para os oitavos-de-final, apesar das capacidades limitadas dos jogadores e de um balanço pouco favorável dos últimos jogos amigáveis.  

Danças de guerreiros
O grande ex-líbris da música é, provavelmente, o ardah, um velho ritual tribal que era uma mostra de unidade do grupo antes de mais uma batalha. Hoje, é apenas uma celebração para ocasiões festivas, incluindo casamentos e eventos culturais e de Estado. Uma autêntica multidão de homens dança frente a frente, de espadas à solta, enquanto cantam em uníssono, durante a batucada de tambores, pandeiretas e pratos. O ardah, que também é uma dança tradicional na Arábia Saudita, faz parte do Património Imaterial da Humanidade da UNESCO.

Hoje em dia, o músico catari mais reconhecido é o cantor Fahad Al Kubaisi, de 41 anos, que também é reconhecido como ativista pelos direitos humanos e pela sua carreira de modelo. Tocador de oud, um dos instrumentos de cordas mais utilizados no Catar, tornou-se no primeiro artista do Golfo Pérsico a ser nomeado para um Grammy, na categoria de Melhor Álbum de World Music, pela obra "Enta Eshq". Agora, terá o seu momento mais internacional, quando se apresentar ao vivo na cerimónia de abertura do Mundial de Futebol.

 

Chuvada de cardamomo 
Cozinhar no Catar significa ter sempre por perto o cardamomo para ir semeando belos aromas em tudo que o que é prato, doce ou bebida. A canela anda também sempre por perto, junto às panelas e tachos.
Na cozinha catari, as aparências enganam só às vezes. Um dos pratos principais, o machboos, lembra as paelhas (o famoso prato da vizinha Espanha), com o arroz amarelado e misturado com carnes (incluindo, neste caso, de camelo) ou peixes e marisco. O harees tem afinidades visuais com a papa de aveia, mas aqui o sabor é bem diferente, visto que a sua cozedura é de trigo moído com carnes e manteiga, e é muito comido durante as noites e madrugadas do Ramadão. Já o Tharid é uma espécie de ensopado de borrego, mas (claro está) ao estli catari, com mais especiarias e ervilhas. As samboosas têm a aparência das nossas chamuças (são triângulos fritos que cabem na palma da mão), soam quase a chamuça mas sabem a uma coisa completamente diferente, porque têm só queijo ou só legumes.

Se as mulheres costumam cozinhar os pratos principais e os doces, já os homens têm como missão nobre serem os anfitriões que tratam das bebidas… Como é o caso do café catari, ou gahwa, que é arábico e aromatizado pelo cardamomo e pelo açafrão. A preparação é cuidada e vigiada de perto, da torrefação à moagem no almofariz, e que termina no despejo de bule em bule até ficar concluído. Os chás também são importantes na cultura catari, como o chá karak, que é feito de uma misturada de especiarias moídas, como cardamomo ou paus de canela, fervido várias vezes, até se lhe juntar o leite. Depois de filtrado, é finalmente servido numa aparência espumosa e acastanhada.  

A gastronomia catari é evidentemente influenciada pela Península Arábica, mas também, e muito, pela cozinha indiana e até pela cozinha egípcia, como o caso do umm ali, uma espécie de pudim de pão árabe, com massa folhada e uma cobertura de frutos secos (amêndoas, pistachos, nozes, passas) e um manto de canela por cima. Não há no Catar bolas de Berlim, mas bolas do Qatar, que se chamam lugaimats, que são bolinhas fritas, cobertas de mel - outras das perdições dos cataris.

 

Oásis de riquezas
O Catar (país com pouco mais de 50 anos) é um emirado bilionário e um dos Estados mais ricos do mundo, por causa das reservas de petróleo e de gás. O país é abundante em dólares, mas não em território, cujos 11,581 quilómetros quadrados são menos de metade de todo o Alentejo.
A capital é Doha, o epicentro de toda a vida catari. A cidade tem uma ilha artificial, The Pearl, que é uma atração turística, com canais a ligar várias praças, inspirada no modelo de Veneza. Mas há outras atrações por perto como o Museu da Arte Islâmica, com uma das maiores coleções de caligrafia, têxteis e joalharia do mundo muçulmano - está temporariamente fechado para renovação - e com um exterior de calcário branco que reflete as mudanças de luz durante o dia. Mas o maior espetáculo de humanidade está no mercado Souq Waqif, recuperado em 2006 após um grande incêndio, onde coabita todo um mundo. Dá para comer e beber o melhor que o Catar tem, e dá para comprar um pouco de tudo, desde bicharada (passarada como falcões) a especiarias, frutos secos, roupa, joalharia, mel, incenso ou perfumes, e há até galerias de arte. Além de dinheiro, convém levar muita paciência para regatear também, faz parte.


Mas é no grande deserto da península catari que nos aguardam as grandes aventuras, como os passeios de jeep pelo imenso areal, que é uma das maiores atividades turísticas deste país cinquentenário. Naquele ecossistema seco e quente vivem e sobrevivem as mais diferentes espécies como o órix-da-arábia, a gazela árabe, as raposas do deserto (com grandes orelhas), ouriços-cacheiros característicos, víboras, ou o lindíssimo texugo-do-mel (com o seu dorso prateado, em contraste com o resto da penugem preta). No mar do Golfo Pérsico, quem manda é um enorme mamífero chamado dugongo, alcunhado de "vaca do mar". É da vida animal que vive alguma da curiosa atividade desportiva catari, como a falcoaria e as numerosas corridas de camelos.