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Viagem ao México: dos sombreros à lucha libre

Os oitavos-de-final são um entrave à tricolor há sete mundiais de futebol seguidos.

Gonçalo Palma

Os mexicanos vão querer celebrar a sua seleção de vivos tanto quanto festejam os finados no Dia de Muertos, a maior tradição de rua do país. O país dos tacos tem que dar a tacada na malapata dos oitavos-de-final. Será capaz? Chegará aos oitavos-de-final, sequer? Há um carrasco reincidente com que vão ter que lidar logo no Grupo C: a poderosa Argentina. 

Brindar com Corona
Da seleção olímpica que foi medalha de bronze no ano passado em Tóquio, há vários jogadores fundamentais no oleamento da equipa A atual: o defesa bombeiro César Montes, o centro-campista de vocação goleadora Sebastián Córdova e os atacantes Alexis Vega, Henry Martín e Uriel Antuna. A guardar a baliza, está o homem do costume, Guillermo Ochoa, reconhecido pela fita elástica que lhe segura o cabelo encaracolado. Todos estes jogadores citados jogam no México, numa seleção pouco europeizada e menos carismática do que as de outras edições. Um dos poucos olímpicos que joga na Europa é o avançado braguista Diego Lainez, que tem mais influência na seleção do seu país do que nos Guerreiros do Minho.
Os dois futebolistas mexicanos mais sonantes são bem conhecidos dos adeptos nacionais: o especialista nas assistências Jesús Corona, que animou os portistas com os seus dribles e que hoje está comprometido com o Sevilha, e o homem dos golos Raúl Jiménez, o ex-benfiquista de serviço no Wolverhampton. Os mexicanos contam com estes dois astros para superarem o favoritismo teórico da Argentina e da Polónia no Grupo C.

 

Gigante na CONCACAF, pequeno no mundo
O México tem sido o gigante sem rival do seu subcontinente: a América Central e do Norte. Na federação internacional que lhe corresponde, a CONCACAF, o país dos aztecas e dos maias é o Estado mais populoso do mundo que fala castelhano, com mais de 120 milhões de habitantes, rodeado de países que não são mais que pequenos territórios continentais, arquipélagos, ou só partes de uma ilha. A norte, há dois países grandes, o Canadá e os Estados Unidos, mas só há poucos anos o último passou a dar alguma importância ao soccer - e, por fim, começou a dar alguma luta ao México. A disputa da qualificação para o Mundial tem sido uma formalidade para o El Tricolor, que é uma das seleções com mais presenças na grande competição da FIFA. Esta vai ser a 17ª presença do México num Mundial.
 
Se o número de presenças em Mundiais é elevado, o mesmo já não se pode dizer do sucesso nas mesmas. Apenas por duas vezes atingiu os quartos-de-final, justamente nos Mundiais de que foi anfitrião (em 1970 e em 1986), e nas últimas seis edições acabou sempre da mesma maneira: nos oitavos-de-final.   
 
Por uma vez, a seleção olímpica sub-23 do México escreveu um guião com final feliz, a ser considerado pela equipa sénior. Contra a maioria das apostas, o México surpreendeu o Brasil e ganhou a medalha de ouro em 2012, numa equipa onde jogavam dois nossos conhecidos, decisivos em contas para o título por cá: o avançado Raúl Jiménez, talismã do banco benfiquista para o tri e tetra benfiquista (curiosamente, nas Olimpíadas de Londres, esteve também na condição de suplente utilizado), e o médio Herrera, responsável por aquele petardo às redes de Bruno Varela que abriu caminho para a recente festa de campeão do FC Porto.
 
Mas passam-se anos, décadas até, e não há nenhum mexicano que se aproxime do carisma e arte do ponta-de-lança do Real Madrid, Hugo Sánchez, que durante a segunda metade dos anos 80, habituou os espetadores do Santiago Barnabéu a shows com o esférico. Como acrobata de asas, o Bota-de-Ouro de 1989-90 era perito nos pontapés de bicicleta. Os livres diretos eram também outra especialidade sua. O que era para nós invulgar, para o mexicano Sánchez era rotina. São assim os génios da bola.


El Mariachi
O mariachi é a música folclórica mexicana mais famosa em todo o planeta. As bandas são numerosas, com trupes de guitarristas, violinistas e trompetistas impecavelmente bem vestidos, como se fossem para uma festa, e onde não faltam sobre as cabeças os sombreros, os largajões chapéus mexicanos. Infiltraram-se no indie-rock norte-americano - os Calexico já os usaram - e no cinema - Roberto Rodriguez, o mano artístico de Quentin Tarantino, até intitulou a sua primeira longa-metragem como "El Mariachi". A música mariachi é hoje Patrimónimo Imaterial da UNESCO.
 
O folclore mexicano tem sido o berço de algumas das canções mais famosas e intemporais, adaptadas a outros contextos. 'Cucurrucucú Paloma' tem sido interpretado por alguns dos cantores mais famosos do mundo (Perry Como, Nana Mouskouri, Julio Iglesias) e mereceu um grande momento cinematográfico por parte do brasileiro Caetano Veloso que canta o tema no filme de Pedro Almodovar de 2002, "Fala com Ela". 'La Bamba' foi outra canção mexicana imortalizada na sétima arte, através do filme do mesmo nome e da versão dos norte-americanos Los Lobos - música que era tocada pelo retratado desse biopic, o rock & roller dos anos 50 Ritchie Valens.

 

Guacamole em boca dura tanto dá que...
Três aspetos generalizam-se na cultura gastronómica mexicana: a comida à mão, os famosos picantes chile e a omnipresença do milho. Há 300 variedades de chile no país e nas mais diversas cores, de vários graus, dos mais leves àqueles que nos deixam sem fala durante uns penosos minutos. Quanto ao milho, propagou-se desde a civilização maia e chega à culinária mexicana de todas as formas, a mais famosa delas a tortilha de milho, muitas em vezes em concha, nos mais leves tacos ou nos mais gordinhos burritos: podem levar carne em cebolada, marisco, queijos e outros recheios.
 
O guacamole é uma das mais populares entradas mexicanas em todo o mundo: basta um garfo para esmigalhar o abacate fresco, que se envolve com tomate, cebola picada e coentros, humedecido com sumo de lima e servido com triângulos de milho fritos, conhecidos como nachos. O milho também surge diretamente no paladar na sua forma natural de folha, nos tamales. Os recheios de carnes, queijos, legumes ou frutas são enrolados nessas folhas, que podem ser também de plantas de bananeira.
 
Muitos dos molhos são preparados e moídos numa espécie de almofariz chamado molcajete. Um dos molhos mais populares no México e que poderemos estranhar é o mole, preparado com chocolate e usado para acompanhar carnes de peru e de frango ou peixe em ocasiões mais festivas. Presente em qualquer mesa, está sempre uma tigela de salsa, condimento à base de chile, tomate, cebola, alho, sumo de limão e água.
 
Há vários pratos emblemáticos, um deles o chiles en nogada, à base de pimentos com molho de noz e recheados com lombo de porco, frutos e tomate. No norte do país há o hábito do churrasco, os chamados asados, de carne de cabrito, previamente preparada com pimenta, lima e, claro, salsa. Tal como o feijão, também o queijo é recorrente na culinária mexicana. Há dois tipos de queijo mais conhecidos: o queijo de cabra de Oaxaca, ou quesillos, e o queijo fresco (a partir da vaca), ou queso fresco.
 
A nível de bebidas, o refresco muito popular, e oriundo de Espanha, é a horchata, um líquido doce de cor de creme, que no México é feito a partir do arroz, e não a partir da planta de chufa, como se faz na região valenciana. Nas bebidas mais quentes, o café é preponderante, como o café de olla, fervido num pote de barro com uma barra de açúcar mascavado e paus de canela. Entre os líquidos alcoólicos, a cerveja tem particular expressão, com destaque para a Corona, assídua nos nossos supermercados, e que deve ser bebida enfiando um oitavo de lima na garrafa, dando-lhe gentilmente a volta e a reviravolta com o dedo polegar a tapar, e até polvilhando sobre o gargalo alguns grãos de sal. Uma autêntica salina no topo do copo é o que acontece com as margueritas, o cocktail feito de licor triple sec, sumo de lima e, claro está, tequila, a bebida destilada mais internacionalizada do México. Não tão destilado, mas também proveniente da planta mexicana do agave, é o mezcal, que também inspira grandes cocktails.
 
Um restaurante mexicano em Portugal deixou de ser um exotismo e normalizou-se nas zonas de comidas dos grandes centros comerciais. Mas os melhores estão, sem dúvida, nas ruas. Eis alguns dos melhores de Lisboa, como o Veracruz, junto à Avenida da República, La Fugitiva, na Rua de São Paulo, o Las Ficheras, no Cais Sodré. Mais acima, no Bairro Alto, há um espaço que é uma mescla de peruano com mexicano, o El Clandestino, no Bairro Alto. Junto ao recinto do NOS Alive, no Passeio Marítimo de Algés, funciona há vários anos o Siesta, um dos primeiros restaurantes mexicanos do país, com vista para o Tejo. Mais próximo do mar, na Ericeira, há um rasto de sombreros no Calavera, outro espaço bom para picar a língua com chile. Quem for da margem sul, ou melhor da margem do Sado, tem a taqueria El Chupa Cabra, em Setúbal. Mas é no Porto, ao lado dos Jardins do Palácio de Cristal, que está o restaurante mexicano mais intimista, o Frida - Cocina Mestiza, com uma decoração lindíssima de peças mexicanas que parece um museu. 


O país que celebra os mortos
A piñata já se tornou no momento mais esperado de muitas festas de aniversários da criançada por cá: trata-se de uma caixa de papel e de cartão, concebida em forma de figura (normalmente, de um animal), recheada de doces, a ser destruída por uma pessoa vendada com um pau. A piñata é uma tradição que vem do México. O que não é possível trazer à Europa é o triplo feriado Dia de Muertos, a grande celebração dos mortos. É muito mais do que um Halloween. Esta tradição, consagrada como Património Imaterial da Humanidade, provém da civilização azteca. Decoram-se as sepulturas com flores e velas; as ruas faíscam de shows pirotécnicos; as pessoas desfilam mascaradas ou impecavelmente pintadas de esqueletos coloridos; esculpem-se caveiras, incluindo de açúcar; fazem-se bonecos e até marionetas de esqueletos; pintam-se murais; tudo alusivo aos mortos...
 
Uma das mortas mais celebradas naqueles feriados é a pintora Frida Kahlo (1907-1954), massacrada com problemas de saúde ao longo da sua vida e que se distinguiu pela intensidade dos seus auto-retratos e pela representatividade da cultura ancestral do México. A pintora ganhou um culto mundial inusitado com o filme sobre a sua vida, interpretado pela atriz mexicana Salma Hayek, em "Frida" (de 2002). Outro ator mexicano com enorme visibilidade hollywoodesca foi o oscarizado Anthony Quinn (1915-2001), ele que foi "Zorba, O Grego" num dos muitos filmes europeus de que foi protagonista. Outro dos atores mexicanos mais históricos é o comediante Cantinflas (1911-1993), alcunhado de "Charles Chaplin do México" e que ficou para a posteridade com aquelas pontas soltas de buço. Há também alguns cineastas mexicanos que se têm conseguido impor nas produções norte-americanas, como Alejandro González Iñárritu (autor de "Babel") ou Guillermo del Toro, realizador de "A Forma da Água", a longa-metragem que ganhou há quatro anos o Óscar de Melhor Filme.    
 
A cultura mexicana está muito nas civilizações pré-columbinas, à vista dos turistas, como as pirâmides de Teotihuacán e a pirâmide maia de Chichen Itzá. Mas há mais tentações para os forasteiros, com várias estâncias veraneantes populares como Cancún, e línguas de areia branca de sonho como Tulum. Mas há maravilhas naturais ainda mais invulgares como a caverna no areal isolado das Ilhas Marietas, o espetáculo rochoso da Playa del Amor, as cascatas de Agua Azul, as cavidades naturais de Yucatán, as piscinas naturais no vale de Hierve el Agua, o fenómeno das águas rosas das salinas de Las Coloradas, e para quem não tem medo das alturas, a paisagem vertiginosa de Barranca del Cobre e as deslumbrantes montanhas de Nevado de Toluca.
 
Os mexicanos não adoram só futebol. O basebol e o boxe também atraem dezenas de milhares de espectadores. Há ainda uma forma de wrestling muito específica e popular no México, a lucha libre, o espetáculo caricaturado de luta profissional nos ringues, em que os atletas usam máscaras coloridas. Na província, os encantos vão antes para a charrería, uma exibição das virtudes dos vaqueros mexicanos. Tal como no antigo colonizador, a Espanha, as touradas são muito populares no país, ao ponto da Plaza de Toros Monumental de México ter capacidade para albergar 42 mil pessoas. O efeito das grandes altitudes produz grande resistência nos corredores e, por isso, é sem grande surpresa que o México tem sido o berço de grandes fundistas e meio-fundistas. Mas o atleta de longo curso mais histórico do desporto mexicano é um marchador, Raúl González, campeão olímpico em 1984, e duplamente recordista mundial na distância de 50 quilómetros. De facto, as alturas não fazem mal nenhum aos desportistas mexicanos, e, noutro plano, o país tem conseguido várias medalhas nos saltos para a água. É dessa modalidade acrobata que veio o desportista mexicano mais medalhado de sempre: o campeão olímpico de 1956, Joaquín Capilla, que subiu ao pódio olímpico por mais três vezes.