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Viagem ao País de Gales: minas de poesia

64 anos depois, a seleção britânica está de volta a um Mundial de Futebol.

Gonçalo Palma

Os menos de três milhões de habitantes da nação mais pequena e menos famosa das Ilhas Britânicas vão desviar a atenção dos campos de râguebi para os relvados do futebol para ver o que a sua seleção pode fazer no Catar... Especialmente no terceiro jogo, contra a Inglaterra, a 29 de novembro. Aí, o fôlego para cantar o hino oficioso 'Hen Wlad Fy Nhadau' vai ser ainda maior. 

Muita alma
O País de Gales está a começar a habituar-se às grandes competições de nações, depois de longas décadas de obscuridade nas fases de apuramento. Chegou às meias-finais do Euro 2016, derrotada por Portugal, e no ano passado, voltou a alcançar a segunda fase da maior competição continental, mesmo se ficando pelos oitavos-de-final. Agora, 64 anos depois, volta à fase final de um Mundial. Não têm o futebol mais vistoso do mundo, mas são uma equipa raçuda que transgride as regras da matemática ao tornar-se mais do que a soma das partes. Dando tudo o que têm, conseguem sempre mais um bocadinho. As estrelas maiores, o avançado Gareth Bale e o médio Aaron Ramsey (ambos trintões), parecem já estar a viver a sua pré-reforma. Bale está a jogar lá longe, na Major League Soccer, ao serviço do Los Angeles FC; Ramsey está ligado ao mais modesto Nice, em França, e já ninguém se lembra da colagem absurda dos seus golos à morte de celebridades (uma coincidência que não é coincidência, porque celebridades morrem todos os dias). Mas quer Bale, quer Ramsey são ainda fundamentais na seleção galesa, que tem como um dos adversários a gigante vizinha e favorita Inglaterra. Nada temerão, porém. Com aquele zelo musculado de operariado, é sempre possível um bocadinho mais... E esse bocadinho mais é a passagem à fase seguinte, lutarão eles.  

País de galos
A longa hibernação da seleção galesa teve como como exceção a participação bem sucedida no Mundial de 1958, onde atingiram os quartos-de-final. Em cinco jogos, a única vitória foi no jogo de desempate de acesso aos quartos-de-final, diante da fortíssima Hungria e contra todas as expetativas, por 2-1. O médio da Juventus, John Charles, era a grande estrela galesa. Mas no jogo dos quartos-de-final, em Gotemburgo, a 19 de junho de 1958, outra estrela nascia e não era galesa: o desconhecido miúdo de 17 anos, Pelé, o autor do golo brasileiro que afastou a equipa britânica.
O País de Gales foi sendo o berço de grandes jogadores nas décadas subsequentes, mas não de grandes equipas. O avançado goleador do Liverpool dos anos 80, Ian Rush, Mark Hughes do Manchester United e Barcelona, e já dos anos 90 em diante, o extremo do Manchester United, Ryan Giggs, tiveram carreiras na seleção galesa que foram uma sombra dos seus altos feitos internacionais a nível clubístico.
Outro grande jogador galês, o avançado John Toshack, foi um dos ídolos do Liverpool que se tornaria campeão europeu em 1976-77. Mas em Portugal, Toshack foi mais conhecido como técnico do Sporting, cargo que desempenhou com moderado insucesso em 1984-85 - e vítima de uma chicotada psicológica de que o Presidente do clube, João Rocha, se arrependeria. Seguiu-se uma carreira bem interessante no país vizinho, ao serviço da Real Sociedad e do Real Madrid, tendo sido campeão pelos merengues em 1989-90, quando treinava craques como Hugo Sanchez, Butragueño e o ex-barcelonista Schuster. No Benfica, durante a invasão de jogadores britânica ordenada pelo treinador escocês Graeme Souness, vestiram a camisola vermelha o veterano Saunders (outrora, um ponta-de-lança de primeira) e o médio tão útil quanto discreto Pembridge, ambos internacionais galeses. Quem não tem boas memórias dos galeses é o FC Porto, que depois de uma campanha assombrosa que o levou à final da Taça dos Vencedores das Taças em 1984, seria eliminado meses depois pela equipa amadora do Wrexham, que jogava no quarto escalão do futebol de Inglaterra (que agrega equipas galesas). 

 

A bandeira do dragão a flamejar na língua e no sotaque
A nação mais pequena e discreta das Ilhas Britânicas não tem o peso internacional das coabitantes Inglaterra, Escócia e Irlanda. E isso também se sente na música. Ainda assim, o País de Gales tem alguns pesos pesados saídos da sua terra montanhosa. Shirley Bassey e Tom Jones são vultos da canção que se agigantaram a cantar temas de James Bond e que foram dando clássicos orelhudos que fazem parte do nosso subconsciente. 'It's Not Unusual' e 'Delilah', na voz de barítono de Tom Jones, já fazem parte da paisagem global. Shirley Bassey está habituada às vistas de cima dos tops de vendas, como se fosse o cume de um monte galês, desde os anos 50.
Longe dos tops mas na dianteira da música vanguardista, o homem da viola d'arco John Cale empurrou o rock para a frente como um dos cabecilhas dos Velvet Underground, tendo depois encontrado o seu próprio caminho em nome próprio, com uma discografia de respeito, de "Paris 1919" a "Songs for Drella" (este a meias com Lou Reed). Bastou um álbum e mais nenhum fizeram, "Colossal Youth" (de 1980) de seu nome, para os Young Marble Giants se tornarem um nome obrigatório dos guias de rock alternativo, com o seu minimalismo pop inocentemente despojado de artifícios. 
O rock galês foi soltando nomes de forma dispersa, sem um estética comum que permita a identificação de grandes movimentos. Nem mesmo nos anos 90 isso aconteceu, quando os grupos galeses se tornaram frequentemente capa das grandes publicações musicais, como o New Musical Express e o Melody Maker. Foi o caso dos Manic Street Preachers, a banda rock mais popular dos últimos 30 anos. Se as bandeiras do dragão vermelho de País de Gales eram ostentados sobre os amplificadores nos seus concertos, esse dragão vermelho flamejava nos sotaques das canções dos Super Furry Animals e dos Gorky's Zygotic Mincy, dois dos nomes emblemáticos do rock alternativo galês que ultrapassaram as colinas da sua nação, e que ousavam cantar também na indecifrável língua galesa (sobretudo os Gorky’s Zygotic Mincy). De forma mais indistinta, os Catatonia foram outra das bandas galesas a destacar-se nos anos 90, com um glamour pop bem diferente do rock mais prosaico dos compatriotas e contemporâneos Stereophonics. Há mais de dez anos atrás, Duffy foi uma das esparanças da nova soul, com uma intemporalidade folk magnética. Passo-a-passo, álbum a álbum, a galesa Cate Le Bon vai-se afirmando como uma das grandes cantautoras britânicas da atualidade e também ela vai sendo uma intérprete bilingue de inglês e galês. 
Os galeses recusam-se a deixar morrer a sua folk, com a sua própria instrumentação, como as harpas e as gaitas-de-foles tipicamente galesas, o hábito de grandes coros (raramente mistos) e o recurso à língua galesa. A dança em grupo é uma grandes expressões do folclore galês, permanentemente alimentado pela densidade de festivais no País de Gales. 

 

Nas quintas e no mar 
A cozinha galesa é, evidentemente, fiel à cozinha britânica e ao seu espírito mais utilitário do que espiritual. Mas há particularidades que ajudam a distinguir a cozinha galesa das gastronomias das outras nações vizinhas. A carne de de borrego, o alho francês e os queijos têm tal qualidade nas terras galesas que são omnipresentes na cozinha e são coabitantes do mesmo prato. O cawl é uma sopa de borrego que leva o tal alho-porro, tal como o prato robusto lamb & leeks, onde a tenra e suculenta carne de borrego galesa acelera a fome a quem a vê. Os galeses gostam de bons snacks à sua maneira, como o welsh rarebit, nada mais nada menos que uma tosta com uma camada de queijo quente por cima, uma espécie de francesinha dos pobres, sem a envolvência das carnes e do molho picante, mas que é tentadora ao olhar - e que também pode incluir o extra do ovo estrelado.  
Não são só as lindas quintas galesas que dão azo para saborosos manjares. A longa costa galesa dá boa matéria prima para degustação. O laver (nori para os japoneses) é uma alga local, chamada "caviar dos galeses" pelo ator Richard Burton, que os galeses preparam pacientemente e grelham, colocando-o sobre um pão, para o tal laverbread. Bivalves como os berbigões e os mexilhões são outras MARavilhas muito petiscadas na costa galesa. 
Junto ao bule de chá, brilham os icónicos welsh cakes, espécie de scones mais achatados com passas e uma camada de açúcar. Empacotados, os welsh cakes não são tão saborosos e parecem umas panquecas mais grossas. Outra guloseima à mesa às cinco da tarde é o bara brith, o bolo de frutas e de especiarias perfeito para acompanhar o chá. A outras horas, nos lindíssimos pubs do País de Gales, sobressai aquele líquido de cevada tão famoso no planeta, a cerveja, de que são também grandes produtores. A Brains é a mais famosa marca galesa.

 

Três pontos para o País Gales 
Quase um terço da população sabe falar a língua galesa, mesmo que possa ser a sua segunda língua, a seguir ao mais universal inglês. Em todas as paragens de comboio e em várias outras situações sociais, há sempre a legendagem em galês, paralelamente ao inglês. A língua galesa, da família das celtas, tem palavras longuíssimas com mais de 50 letras, que só mesmo os locais conseguem dar-lhe fonética. É nas letras, mas na literatura, que os galeses se têm destacado há séculos. Um dos mais notáveis é o poeta Dylan Thomas (1914-1953), que mesmo usando a língua inglesa, é tão reconhecido pela sua identidade galesa, como pelo seu génio. A independentista galesa Kate Roberts dedicou-se mais aos contos, tendo-se tornado uma escritora bilingue. Já Roald Dahl é um dos grandes escritores da literatura infantil: "Charlie and the Chocolate Factory" é uma das suas obras mais famosas. O livro "How Green Was My Valley" foi escrito por um galês, Richard Llewellyn. O cineasta norte-americano John Ford pegou logo neste drama de uma família de mineiros num vilarejo galês País de Gales e fez dele um clássico cinematográfico, premiado com o Óscar de Melhor Filme de 1941 - a ficção de uma grande realidade da nação durante o reinado da Raínha Victoria. Mais adentro da realidade rural, fez algum culto no cinema de autor dos anos 90 o filme "The Englishman who Went up a Hill but Came down a Mountain", de Christopher Monger , onde dois cartógrafos ingleses (um deles desempenhado por Hugh Grant) chegam à conclusão de que a montanha icónica de uma aldeia galesa é, afinal e após contagem, uma colina, o que indignou os locais - numa tensão cómica entre os dominadores ingleses e os dominados galeses. Algumas das grandes celebridades internacionais galesas são atores que vingaram em Hollywood, como o duplamente oscarizado Anthony Hopkins (nunca nos esqueceremos do seu papel de psicopata perigosamente inteligente, Hannibal Lecter, no filme "O Silêncio dos Inocentes"), Catherine Zeta-Jones ou, de tempos passados, o carismático Richard Burton (o par na grande tela e na vida real de Elizabeth Taylor).
O País de Gales distingue-se da plana Inglaterra por causa das suas montanhas. No norte, o Snowdonia National Park oferece belíssimas panorâmicas. A sul, o que se destacam são as praias, nomeadamente na península de Gower (onde está a cidade de Swansea), com areia fina, bem diferente das pedras que dominam as praias inglesas como as de Brighton. O País de Gales está ainda pingado por pitorescos vilarejos costeiros, como Trearddur e Portmeirion, a norte, e o bem piscatório Tenby, a sul. Na capital Cardiff, não há como ignorar o icónico Castelo, local de concertos de alguns dos nomes fortes, incluindo de galeses como Tom Jones, os Manic Street Preachers ou os Stereophonics.
Na gíria futebolística portuguesa, sempre que há um remate disparatado para as alturas, muito acima da barra da baliza, o comentário que se ouve das bancadas é "mais três pontos para o País de Gales", talvez com a memória viva dos diretos televisivos que havia do Torneio das Cinco Nações [hoje, Torneio das Seis Nações], que tinham como uma das seleções mais fortes... o País de Gales. O orgulho nacional galês está muito centrado na sua seleção de râguebi, onde o hino oficioso 'Hen Wlad Fy Nhadau' ["A terra dos meus pais"] se popularizou, e que qualquer adepto sabe cantar. O râguebi é praticamente o desporto-rei no País de Gales, que deu alguns dos maiores jogadores da modalidade como o mítico Gareth Edwards, que brilhou com a bola oval ao longo dos anos 60 e 70. O País de Gales joga enquanto entidade autónoma nos três desportos coletivos mais populares da Grã-Bretanha: râguebi, futebol e criquete. Na grande maioria dos restantes desportos, os atletas galeses competem debaixo do arco da Grã-Bretanha e por isso a sua nacionalidade galesa fica mais omissa. Poderão ser os casos de Lynn Davies, medalha de ouro olímpica no salto em comprimento em 1964 (atletismo), ou de Nicole Cooke, a primeira mulher britânica de sempre a ser campeão olímpica no ciclismo, o que aconteceu em 2008.