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Silvia Mendes
02 junho 2020, 04:42
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Muito amor e ares de bonança no Campo Pequeno em Lisboa

Muito amor e ares de bonança no Campo Pequeno em Lisboa
Joana Baptista
Silvia Mendes
02 junho 2020, 04:42
Aconteceu. Deixem o Pimba em Paz marcou a reabertura das portas da sala lisboeta depois dos quase três meses de confinamento para imobilizar o "bicho".

 

Quem não arredou pé do Instagram do Bruno Nogueira durante os estóicos meses de "cativeiro" caseiro, confusão e algum medo sabe que o espetáculo desta noite, além de assinalar o aguardado desconfinamento da cultura nos palcos, serviu para o reencontro possível da família numerosa que se foi constituindo, de uma forma absolutamente espontânea, à volta das tertúlias do Bruno Nogueira com os seus companheiros de galhofa, arrelias, alegrias e pensamentos. O fenómeno da quarentena "Como é que o Bicho Mexe?" ainda move pessoas. Muitas pessoas. No Campo Pequeno? A que horas? Vamos, claro. Tudo para ouvir outra vez a palavra "esguicho", mesmo que na plateia esteja o Primeiro-Ministro, António Costa. E esteve, sim senhor. 

Terá sido também por isso que os bilhetes para esta versão histórica de Deixem o Pimba em Paz nem aqueceram o lugar nos pontos de venda. O espetáculo de hoje - o grande pioneiro da era Covid-19 - esgotou em apenas 11 minutos. Os mais desenvoltos a marcar lugar foram bafejados com o sopro da velocidade, é certo, mas importa que ninguém fique do lado de fora desta experiência coletiva de sensações que não foram abafadas pelas ainda imprescindíveis máscaras. É para isso que serve este relato. 

A congregação desta noite na sala lisboeta deu ares de bonança. Foi a noite do renascimento dos palcos que, no final, teve um demorado aplauso de pé. Se houve um friozinho na barriga a caminho do incerto, o nervosismo foi sendo amolecido pela reconfortante constatação de que a vida, afinal, estava ali, no mesmo sítio, à nossa espera. Foi o primeiro concerto desta nova normalidade, que, a cada dia que passa, soa a menos distópica e mais nossa. 

Ao entrar no Campo Pequeno, percebemos rapidamente que foi tudo pensado ao pormenor para manter a segurança recomendada pelas autoridades de saúde. A cúpula da sala lisboeta esteve parcialmente aberta, o que ajudou a que a arena estivesse bem arejada, respirável e desafogada. Para a desinfeção das mãos, prática que já começa a ser automática, foram criados vários pontos estratégicos com gel desinfetante. A ordem e a organização - bens essenciais para manter a segurança - foram cumpridas e todos respeitaram a nova lógica. As entradas e movimentações no interior da sala foram organizadas para manter a devida distância de segurança entre as pessoas e a circulação fez-se pela direita para evitar "colisões" indesejadas. Na plateia, bancadas e galerias, as pessoas foram divididas por pequenos grupos de afetos, com duas cadeiras vazias a manter a distância de segurança entre cada um. As máscaras foram o adereço obrigatório e nunca saltaram da cara do público. Estava tudo pronto para a retoma daquilo que nos faz bem.

Bruno Nogueira e Manuela Azevedo juntaram-se aos virtuosos Filipe Melo, Nuno Rafael e Nelson Cascais - o elenco residente. Salvador Sobral e Samuel Úria foram convidados. Atuaram num mundo novo, é certo, mas as boas emoções foram as do costume. O velho palco, que nem ganhou pó, estava finalmente com gente em cima. 

Ver o espetáculo Deixem o Pimba em Paz, que já soma sete anos, é embarcar na recriação do cancioneiro português pimba com recurso a imaginários musicais um pouco mais distantes e improváveis - do jazz ao acústico ou da excitação do pop ao requinte melodramático da balada dorida. Aliado a isto, claro, a naturalidade e genialidade com que o Bruno Nogueira arranca gargalhadas e prolonga o estado de graça do público

O concerto, que durou cerca de duas horas, começou com '24 Rosas'. Foi o primeiro trunfo popular a ser ouvido na arena lisboeta. Bruno Nogueira, que trocou a opção binária de t-shirts dos famosos diretos por um fato bem aprumado, apesar das calças curtas, começou com balanço, a dar tudo na spoken word e em constante posição de ataque aos versos de José Malhoa. Manuela Azevedo seguiu-lhe, graciosamente, o rasto, recebendo um aplauso bem forte assim que alinhou no ataque aos versos que andaram bem embrulhados com o banjo de Nuno Rafael, o piano de Filipe Melo e o contrabaixo de Nelson Cascais. 

Se os primeiros segundos de 'Azar na Praia', de Nel Monteiro, pareciam retirados de uma criação mais ao jeito dos Dead Combo ou algo do género, a prosa dos marmelinhos quase de fora devolveu-nos ao propósito de estarmos ali: celebrar as canções que arrebitam os arraiais mesmo que, neste arraial particular, sejam tratadas com pinças diferentes. 'Sozinha', o grito de independência de Ágata, saiu, estrondosa, da voz de Manuela Azevedo que teve amplitude suficiente para agitar a Grande Lisboa. Se para dançar o tango são precisos dois, Manuela Azevedo não quis saber. A mulher dos Clã deu conta do recado sozinha!, enquanto Filipe Melo parecia estar a voar em cima das teclas. Ah! Houve queixume romântico de Bruno Nogueira a cantar 'Na Minha Cama Com Ela', canção ali adaptada a algo como uma reminiscência pop dos anos oitenta.

Depois do romance condenado de Mónica Sintra, soltou-se do alinhamento um dos picos dramáticos do reportório de Graciano Saga - 'Vem Devagar, Emigrante' - transformado numa peça exemplar de hip hop, daquele mesmo da street, em que as rimas trágicas provocaram um coro de risos vindo do escurinho da plateia. O festivo do bailarico 'Linda Portuguesa' antecipou uma segunda volta pelo espólio romântico de Ágata. 'Comunhão de Bens' originou outra comunhão - a das luzes dos telemóveis a balançar como se quer num concerto. Bolas, que saudades. 

Salvador Sobral subiu ao palco debaixo de aplausos demorados - coisa muito frequente esta noite - para emprestar os seus tiques jazzísticos ao 'Som de Cristal', de Marante, às tantas com a voz entrelaçada com a de Manuela Azevedo. Seguiram-se questões existenciais, embora circunscritas ao universo agrícola, com 'Porque Não Tem Talo o Nabo (de Leonel Nunes), 'A Garagem da Vizinha' (do Quim Barreiros, claro) transformada num momento de sublime beleza acústica e uma versão meio tribal de 'Bebé' (de Romana) com a sintonia/fúria de Manuela Azevedo e Bruno Nogueira no comando da percussão. 'Sensual', de Toy, testou os agudos de Nogueira que, importa referir, em vários momentos do concerto andou a experimentar a liberdade das vocalizações. Samuel Úria, a quem Bruno Nogueira gabou as botas brancas e imaculadas que calçava, ajudou com 'Mãe Querida' que teve um "grand finale" a várias vozes e a capella. 'O Melhor Dia Para Casar', 'Não és Homem Para Mim', 'Ninguém, Ninguém', 'Taras e Manias' e os 'Peitos da Cabritinha' (transformada numa canção de embalar, imagine-se) também foram ouvidas esta noite.

Calma, ainda há mais: 'O Pito Mau', 'A Padaria' e os 'Bichos da Fazenda' - esta última com um final de autêntica catarse animalesca - ficaram para o fim. O fim daquilo que afinal foi um (re)começo. 

Depois de apresentar os músicos, com o habitual bullying de amor, Bruno Nogueira agradeceu a todos os que arriscaram, com confiança, a estar ali, sublinhando e repetindo a sensação de alegria de voltarmos a estar juntos.

'Vendaval', de Tony de Matos, e a canção que fechou os diretos de "Como é que o Bicho Mexe?', foi acrescentada, com muito amor, ao alinhamento. Como não? Depois do vendaval pandémico, em dias ainda de cautela pela imprevisibilidade da agitação marítima, resta-nos estas felizes conquistas de navegação. Obrigada, Bruno e companhia. Com bué amor, dobrámos o Cabo da Boa Esperança que não voltará a ser o Cabo das Tormentas

Esta terça-feira há mais Deixem o Pimba em Paz, no Campo Pequeno, e terá a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.