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Gonçalo Palma
01 março 2021, 14:14
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Covid-19: a última vaga será a da música

Covid-19: a última vaga será a da música
Sang Tan (Associated Press)
Gonçalo Palma
01 março 2021, 14:14
Quando o mundo desconfinar de vez, as novas variantes serão sonoras. Os "loucos anos 20" vão ter uma sequela no século XXI.

Na música, abundam os prefixos do pós para designarmos géneros ou ciclos históricos. Há o pós-rock, o pós-punk, o pós-disco, e em breve, espera-se que surja o pós-covid. Quando entrarmos nesse período musical pós-covid, poderemos dizer contagiante em vez de contagioso para falarmos das novas variantes sonoras que se adivinham. Então, quando alguém disser “é viral”, voltamos a imaginar que se esteja a falar de um estrondoso êxito musical, como antigamente, e não deste monstro pandémico com nome de software informático. Que venha o vírus sonoro, encadeado em acordes, que nos motive a sair para a rua, e não aquele vírus silencioso e sorrateiro que tem obrigado a fechar-nos em casa.      

O mundo, tal como o conhecíamos, foi interrompido. Na música, da noite para dia, reduziram-se a nada os itinerários ao vivo exigentes que massacravam os artistas, mas que simultaneamente lhes garantiam o ganha-pão. O tempo, outrora escasso, passou a totalitário. Nunca houve tanto tempo para criar como agora. Confinam-se os corpos mas desconfinam-se as mentes, para as maravilhosas viagens da criação e para a sanidade. 

Os teatros estão vazios, os palcos desocupados, mas em muitos lares de músicos novas canções estão a ser arquitectadas sem que o público saiba. Os melhores cozinhados são em lume brando, na música o seu preparado obedece à mesma lógica. Quando se levantar a tampa, uma imensa cena musical ferverá com canções a borbulhar.     

Há já alguns casos materializáveis, consequência dos confinamentos, que prenunciam a vaga. Eis vários exemplos diferentes.   

Taylor Swift  

Esta mulher pode perder batalhas, mas nunca perde guerras. Impedida de tomar posse dos masters dos cinco álbuns gravados para a editora Big Machine e deles tirar proveito, Taylor Swift iniciou um processo hercúleo de regrava-los um a um. "Fearless (Taylor's Version)" é o primeiro deles a reconquistar nova vida, com ainda mais faixas. Esta remexida homérica no baú do passado só é possível com duas coisas: a tenacidade de Taylor Swift e o tempo subitamente livre que o confinamento permite.  

Antes, durante a crise pandémica, tinha gravado e lançado dois álbuns, Folklore e Evermore, e fez o documentário sobre a forma como trabalha, "Folklore: The Long Pond Studio Sessions". Mais desconfina música, mais desconfiamos que Taylor Swift se tenha confinado nos estúdios de Long Pond e não em casa. O bicho avivou-lhe ainda mais o bichinho. 

 

Arcade Fire  

Aqui, as duas ou três doses não são de vacinas mas de canções. Quem o avisa é o líder Win Butler, que diz que o isolamento já permitiu à banda canadiana acumular material para dois ou três álbuns. 

Com os Arcade Fire, cada ciclo criativo é preparado cautelosamente, com um álbum a cada três anos. Essa espera de três anos já foi ultrapassada - o último longa-duração "Everything Now" data já de 2017. A crise pandémica alongou ainda mais o interregno. Quando se soltarem as novas canções (supostamente a ser gravadas no Texas), vai ser uma inundação de energia frenética que o grupo do casal Win Butler - Régine Chassagne desde cedo nos habituou.  

 

Beyoncé 

É só uma fezada mas Beyoncé deve estar a preparar alguma coisa. A cantora nunca está sossegada, mesmo quando parece. Em 2013, apanhou o mundo de surpresa quando de repente lançou o seu álbum homónimo, sem dar tempo para especulações na imprensa. A rainha do r&b tem andado mais ativa no mundo empresarial e no seu ativismo humanitário. Mas musicalmente, quando não está a disparar sons, está a calibrar-se.      

 

António Zambujo 

A necessidade de confinamento empurrou os músicos para uma maior simplicidade. Foi o que António Zambujo fez, com as canções novas que vão ser agrupadas no álbum "António Zambujo Voz e Violão", cujo título resume o conceito do disco. "António Zambujo Voz e Violão" foi preparado durante a crise sanitária e sai a 23 de abril, na esperança que possa encontrar os palcos em breve. 

Duetos não lhe têm faltado recentemente a Zambujo, com Bárbara Tinoco ou com a lenda brasileira Gal Costa. Tiraram os concertos a Zambujo, mas não o desconsertaram.    

 

Gisela João 

A fadista minhota aproveitou o confinamento para fazer uma revolução dentro dela própria, desafiando-se a novas canções na pele também de compositora e de letrista, e não apenas como aquela calorosa intérprete que todos conhecemos. Estas novas canções vão tomar forma no seu próximo álbum, cujo título é ele próprio o prenúncio da vaga musical que aí vem: "AuRora". O disco foi gravado entre Lisboa e Barcelona, e conta com produção de Michael League e também de de Nic Hard e de Gisela João. "AuRora" sai em abril. 

Lana Del Rey 

Lana Del Rey é conhecida pela alta produtividade. A cantora revelou há dias que gravou um álbum de versões de country durante os confinamentos. E ainda durante este longo período de recolhimento mundial, Lana Del Rey está a pouco mais de duas semanas de lançar o seu sétimo álbum, "Chemtrails over the Country Club", cujas canções foram concebidas ainda nos tempos antigos em que não havia covid-19. Mas todas as decisões sobre o título, alinhamento e demais pormenores foram tomadas durante a pandemia. Em setembro, lançou ainda o seu álbum de spoken word "Violet Bent Backwards over the Grass". 

 

Nick Cave 

Este homem sempre fez dos obstáculos as suas forças. Quem se reergue com a perda súbita do pai num acidente de viação, com a toxicodependência de heroína, com fins de relações amorosas e com a morte do seu filho adolescente, é capaz de não se ir abaixo com a devastação pandémica. E Nick Cave foi capaz. Perante a adversidade incontornável de ter que cancelar toda uma digressão mundial que passaria pela lisboeta Altice Arena, fez num golpe de repentismo oito canções em dois dias e meio com o seu braço direito Warren Ellis. Essa leva de temas forma o álbum "Carnage", que o mundo pode ouvir na internet desde o final da semana passada.  

Perante a impossibilidade de atuar junto do público, Nick Cave deixou para a posteridade um documento ao vivo que é o retrato desta época de confinamento: o filme-concerto "Idiot Prayer", em que toca e canta ao piano solitariamente numa das grandes salas do Alexandra Palace. Essa atuação tinha sido transmitida via streaming.  

Antes da vaga musical pós-covid, Nick Cave foi dos que se adiantou.  

 

Bruce Springsteen 

O Boss não vira as costas às crises - tal como já escrevemos num artigo de julho passado. De acidentes nucleares a ataques terroristas, dos efeitos da guerra do Vietname ao impacto social das depressões económicas, Bruce Springsteen arranja sempre uma canção. Que canção ou canções estarão para brotar sobre esta pandemia que grassou a América e o mundo?  

Apesar de editado em outubro de 2020, "Letter To You", este é um álbum gravado e pensado antes da pandemia e tem uma natureza mais autobiográfica. Ainda não conhecemos o Bruce Springsteen pós-pandémico. Mas ele irá aparecer. 

 

Incógnita 

Há uma enorme incerteza sobre algo de muito bom que está para acontecer. Sobre o que está feito e o que está para ser feito. Sobre os artistas e bandas que já conhecemos e os artistas e bandas que iremos conhecer e não conhecemos. Muito material está ainda por desconfinar, da gaveta até ao estúdio e ao seu encorpamento por outros instrumentistas.  

Dos cacos em que a música ficou, explodirá um big bang. As milhões de canções são rebentos que rebentarão e então o século XXI começará a sério.