Ouça a M80, faça o download da App.
Redação
27 julho 2021, 13:30
Partilhar

Marta Ren: "a música sempre foi o meu refúgio, o meu sítio sagrado"

Marta Ren: "a música sempre foi o meu refúgio, o meu sítio sagrado"
Facebook Oficial Marta Ren
Redação
27 julho 2021, 13:30
A cantora editou "Marta Ren convida Orquestra Jazz de Matosinhos ao Vivo nos Aliados" em junho. Dia 31 de julho, Marta Ren atua nos jardins do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.


O concerto que deu na portuense Avenida dos Aliados - aliada à Orquestra de Matosinhos - foi um dos tópicos da conversa que tivemos com a dona e senhora do movimento funk n' roll - Marta Ren. O concerto, que aconteceu em dezembro de 2019, era um sonho antigo para a cantora do Porto e acabou por ficar cristalizado em disco, agora editado. 

"Marta Ren convida Orquestra Jazz de Matosinhos ao Vivo nos Aliados"
 foi lançado a 25 de junho via Rastilho Records e está disponível no formato CD e nas plataformas digitais. 

A cantora e compositora, que parece ter a alma em carne viva na voz, entregou algumas faixas do álbum de estreia - "Stop, Look, Listen" - aos arranjos da orquestra nortenha e adicionou clássicos do cancioneiro americano ao alinhamento do concerto que aqueceu aquela noite de inverno na avenida do Porto. Estávamos na viragem do ano, de 2019 para 2020, e, como pudemos todos perceber mais tarde, na viragem para um desafiante e estranho contexto histórico. Foi o último concerto que Marta Ren deu em contexto de total liberdade sanitária, poucos meses antes de haver uma pandemia a mudar as rotinas do mundo e a suspender os palcos.

O espetáculo, que agora serve quase como arquivo histórico da velha e saudosa normalidade, contou com 17 músicos da Orquestra Jazz de Matosinhos. A direção esteve a cargo do maestro Pedro Guedes.

A edição do concerto em disco serviu de acendalha para outros assuntos. Havia muita conversa para pôr em dia. A crise pandémica, o recente single '22:22', a música como um escape terapêutico ou a preparação de um novo disco foram os outros temas que vieram à baila na entrevista a Marta Ren - ela que é uma autêntica força da natureza, do funk, da soul e da vida. A cantora soma mais 20 anos de carreira e tem por hábito esgotar salas de espetáculo em toda a Europa. No próximo dia 31 de julho, Marta Ren vai atuar nos jardins do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, no âmbito da iniciativa Destemporada.


Quase um ano e meio de pandemia e de intermitência dos palcos. Como é que tens vivido isto tudo?

Estou a viver como quase todos os meus colegas desta área, com muita dificuldade e com algum sofrimento à mistura. Sinto ansiedade e estou a acumular preocupações, frustrações e noites mal dormidas. É certo que há muita gente de outras áreas a passar por isto, mas o nosso setor está a ser realmente muito afetado. Tenho dias. Há dias em que acordo com energia, alguma esperança e vejo a luz ao fundo do túnel e depois há outros em que sinto o oposto.

A verdade é que a palavra "resistência" já fazia parte do vocabulário diário da vida de muitos músicos antes do "golpe" pandémico...

Sim. A resistência e a incerteza não são coisas novas na minha vida, mas achava que já tinha ultrapassado essa fase. Não sentia este grau de incerteza e de desapoio há uns bons anos. Sinto que, com isto tudo, voltei um pouco atrás. Sinto que retrocedi, não propriamente questões de carreira, mas sinto que andei para trás na parte emocional. Estou a reviver as mesmas ansiedades e as mesmas frustrações que vivi há 10 ou 15 anos. 

Então, vamos ainda mais atrás. Vamos até ao ponto em que tu e a música se cruzaram. Numa entrevista que deste recentemente, descreveste a forma como colocavas a agulha em cima de um disco de vinil quando eras criança. Era um gesto quase solene para ti e revelador do cuidado que já tinhas com a música quando eras pequenina...

Não consigo explicar porquê. Acho que era algo incutido pelo meu pai que me dizia constantemente para ter cuidado com a agulha. O meu pai fazia sempre um briefing muito aprofundado sobre a forma como deveria colocar a agulha no vinil. (risos) Mas acho que sim. A música sempre foi o meu refúgio, o meu sítio sagrado. É esse o lugar que a música ocupa na minha vida, desde que tinha 4 ou 5 anos. Desde que me lembro.
 

 

E isso sente-se no teu percurso...

O meu trabalho está sempre diretamente ligado ao meu lado emocional. É praticamente impossível separá-los. Por vezes, quando quero ser um pouco mais fria e tento separar as coisas, percebo logo que não são dissociáveis. Tudo o que está relacionado com música - os objetos, os instrumentos - é sagrado para mim. É a minha religião. 

Cada atuação também... 

Claro! Claro que sim. Mas também não vou mentir. Se der 85 concertos no espaço de um ano, como já aconteceu, não me vou lembrar de metade. Se alguém me relembrar, até sou capaz de chegar lá, mas quando são muitos concertos, muitas viagens e pouco descanso é difícil lembrar-me de todos. O que importa é que durante o concerto estou lá, estou sempre presente. Não há qualquer tipo de automatismo durante a atuação mas há nas restantes partes do dia, até chegar à hora do concerto. 

O que é que sentes quando estás em cima do palco?

É uma grande purga. É quase como uma sessão boa de terapia. Há purga, divertimento e muita satisfação. Quando estou a dar concertos sinto que estou no sítio certo, à hora certa. Sinto que estou a fazer o que é suposto fazer. Isso acontece-me poucas vezes na minha vida pessoal. Só a parte em que tenho de comunicar com o público é que me deixa mais nervosa. Já me aconteceu enganar-me ou esquecer-me da letra porque já estava a pensar que teria de comunicar com o público logo a seguir.

Como é atuar fora e dentro de Portugal:


A 28 de dezembro de 2019, atuaste na Avenida dos Aliados, no Porto, com a Orquestra Jazz de Matosinhos, concerto que foi agora editado em disco. Quiseste guardá-lo como um tesouro. Porquê?

Foi o último concerto que dei antes da pandemia. Não sei quantas pessoas estavam a assistir mas sei que a Avenida dos Aliados estava cheia. Para a maior parte das pessoas foi o último concerto que viram antes do confinamento. Quando lancei o disco em junho recebi mensagens de muita gente a agradecer por agora conseguirem ter a memória daquele concerto em objeto. 

É um concerto histórico na vida dessas pessoas...

Na vida dessas pessoas e na minha vida. (risos) É histórico por várias razões.

Como surgiu a possibilidade de dar um concerto nos Aliados com a Orquestra de Matosinhos:
 

 

Tenho aqui uma frase do maestro da Orquestra, Pedro Guedes, sobre concerto: "dezassete músicos amplificam a rainha do soul-funk. Agarrem-se!". Os arranjos da orquestra foram ao encontro do que imaginavas?

Gostei dos arranjos todos. Foram feitos por músicos diferentes. Não consigo escolher um arranjo ou um tema. É quase como se tivesse de dizer qual é o meu filho preferido. Neste caso, se escolhesse algum, ficariam tristes os outros filhos e os outros pais, já que as canções tiveram arranjos de músicos diferentes. (risos)         

 

O alinhamento do concerto:
 

 

Arrepiei-me várias vezes nesse concerto. Bem, também estava muito frio. (risos) Mas arrepiei-me algumas vezes, sim. É irónico. Foi o último concerto que dei antes da pandemia chegar e arrastar-nos a todos. Depois, mais tarde, o primeiro concerto que dei durante a pandemia foi também com a Orquestra de Matosinhos. A seguir a esse espetáculo, atuei na Festa do Avante [em setembro de 2020] e nesse concerto também me arrepiei bastante. Estar ali, depois de tanto tempo sem pisar o palco, naquele palco tão importante e mítico, provocou-me arrepios. Normalmente as pessoas arrepiam-se nos braços, mas eu sinto arrepios nas pernas e nas bochechas. Tal como aconteceu na Avenida dos Aliados, passei o concerto todo do Avante a sentir arrepios nas pernas e nas bochechas. (risos) A música tem essa capacidade. Tem a capacidade de provocar reações físicas que não conseguimos controlar.     
 

E tens um single recente - o '22:22' - que é uma "conversa" com quem eras aos 22 anos. Porque é que quiseste "falar" com a pessoa que eras na altura?

Essa canção é o que eu diria a mim própria com 22 anos. Os meus 22 anos foram muito marcantes. Houve outras idades que me deixaram marcas, mas os 22 anos foram de mudança. Mudou muita coisa na minha vida e de uma forma repentina. Essas mudanças obrigaram-me a chegar à maturidade de uma forma muito rápida. Talvez por terem passado 20 anos comecei a pensar nessa fase da minha vida. Também faço terapia há alguns anos e isso levou-me a fazer essa purga. A fazer essa resolução na canção. Resolvo muitas coisas com a música. Coisas que me provocam raiva, angústia, sofrimento ou alegria. Até mesmo os meus queixumes. Tento sempre "empurrar" essas emoções para a música. Faço a catarse na música e depois arrumo tudo. Quando acabo de escrever a música parece que fica resolvido. 

A preparação do novo disco, o sucessor de "Stop, Look, Listen" (2016):