Ouça a M80, faça o download da App.
Gonçalo Palma
21 outubro 2021, 10:16
Partilhar

DocLisboa: o (quase) regresso à normalidade a partir de hoje

DocLisboa: o (quase) regresso à normalidade a partir de hoje
DR - Warner/Karsh (cortesia DocLisboa)
Gonçalo Palma
21 outubro 2021, 10:16
Entrevista à diretora do festival, Joana Sousa. DocLisboa decorre entre hoje e o dia 31.

Inicia-se hoje um dos maiores festivais de cinema em Portugal, o DocLisboa, que se expande por vários espaços da capital. Iniciado e continuado como uma plataforma de apoio ao cinema de documentário, o DocLisboa é também uma aferição a novas formas de entendimento da sétima arte. A edição deste ano assinala o regresso do festival à quase normalidade: salas com lotação máxima e ao mesmo tempo a obrigatoriedade do uso de máscaras para os espectadores do DocLisboa. 

Falámos com Joana Sousa, que integra o trio de diretores do DocLisboa.

O que mais marca esta edição do DocLisboa? 
É a 19ª edição do DocLisboa. É já um caminho muito longo. É o voltar aos 11 dias habituais. A edição passada aconteceu em moldes diferentes e agora voltámos a este formato intenso, com uma programação com 249 filmes. Todos os dias há sessões de manhã e à tarde. Em Lisboa inteira, temos as salas habituais: Culturgest, São Jorge, Cinema Ideal, Cinemateca, o Cinema City Campo Pequeno, o Museu do Aljube, o Museu do Oriente. É uma programação que acompanha esta nova vontade de fazer coisas e de estarmos juntos. Estes 249 filmes são acompanhados por um grande número de convidados. O festival é este local de partilha. É uma programação forte, no sentido em que vai trazer muito desse desejo de ver filmes e de falar sobre eles. Temos as secções habituais: o Heartbeat, o Da Terra à Lua, o Riscos, o Cinema de Urgência e as competições, com várias estreias nacionais e mundiais.   


  
A secção Da Terra à Lua é o noticiário que falta aos canais informativos?  
O DocLisboa é um lugar onde se tenta ter tempo para se falar das questões. O Da Terra à Lua encerra um pouco mais isso, na medida em que são filmes que trazem questões importantes na contemporaneidade: questões políticas, sociais, económicas e também, de certa maneira, artísticas. É o lugar onde os realizadores com obra longa podem voltar, apresentando os filmes e trazendo estas questões para a programação. É uma secção que, como o nome indica, traz desde o macro ao micro. Temos questões como o Vitaly Mamsky que entrevista o Gorbachev [em "Gorbachev. Heaven"], que ainda é vivo, mas que está bastante debilitado e o filme trata [também] disso. É um filme que trata de uma questão macro: o fim da União Soviética e a construção de uma nova Europa. Mas depois trata de questões como um corpo que entra noutro estado. Uma pessoa que viveu uma juventude e uma meia-idade tão intensas e agora se vê confrontado com um corpo que não responde exatamente a essa energia.     


  
Os filmes do Heart Beat são retratos, jamais biografias?  
Sim, na medida em que esses retratos já encerram em si a história da pessoa, bem a maneira como essa pessoa é representada, obviamente em graus diferentes de fama. Esses retratos também se constroem sobre a forma como uma pessoa vive nessa intimidade e como se relaciona com outras pessoas, não só enquanto individuo, mas também como figura pública, enquanto símbolo. Nós temos por exemplo o filme sobre os A-ha na secção do Heartbeat ["a-ha The Movie", realizado por Aslaug Holm e Thomas Robsahm] que trata exatamente disso: como é que eles, tendo um primeiro sucesso que os atira para a estratosfera da pop, vão lidar com isso, tendo toda uma carreira pela frente. Temos também uma figura que tem uma relação muito diferente com o público, que é a Lydia Lunch, um ícone do punk que faz também performances. Habitando um local punk, como é que uma figura pública como ela usa a própria agenda para o ativismo político e a luta por questões de género.      


  
O documentário sobre os A-ha traça os conflitos internos entre três colegas que não são amigos, certo?  
Como é que três feitios tão diferentes como vontades diferentes lidam com um sucesso pop que acontece sem querer. O vocalista [Morten Harket] queria construir outro tipo de carreira na música. Eles, eventualmente, conseguem isso paralelamente aos A-ha. Tens este mamute de significado e tu representas alguma coisa para as pessoas. Então, eles têm que voltar aos A-ha. É essa luta constante entre o que eles queriam e as oportunidades que tiveram. Essas oportunidades foram bastante boas para eles. Ficaram muito [presentes] no panorama pop. Há sempre essa tensão entre o que eles queriam e onde eles chegaram. Nessa senda entre as oportunidades que nos são dadas e os desejos íntimos, temos também o primeiro filme da Charlotte Gainsbourg, que ela faz sobre a mãe, a Jane Birkin, "Jane by Charlotte", que é o retrato acima de tudo da relação entre mãe e filha. Obviamente que não é uma relação simples, pelo facto da Jane Birkin e da Charlotte Gainsbourg serem pessoas intensas, com as carreiras que tiveram. O filme é esse olhar de uma filha para uma mãe. Como é que se processa uma intimidade a partir da fama, da Jane com o Serge [Gainsbourg] e depois como é que o seu apartamento é transformado em museu. Há vários símbolos, como o Jacques Cousteau, em "Becoming Cousteau", sobre uma luta ambiental. Portanto, é uma secção cheia de retratos mas acima de tudo caminhos.     


  
O misto de documentário com ficção, cada vez mais evidente, tem espaço de acolhimento no DocLisboa? 
O nosso interesse maior é trabalhar o cinema nas várias linguagens que contém, seja mais documental, experimental ou ficcional. Nessa ideia, o filme vale pelo que traz e pela maneira como se constrói. Temos várias tensões na nossa programação, que começa com "A Terra Segue Azul Quando Saio do Trabalho" do Sérgio Silva e "Landscapes of Resistance" da Marta Popivoda, que são filmes que se baseiam mais em cinema de ensaio. Passados dez dias, acabamos com o "The Tale of King Crab" [realizado por Alessio Rigo de Righi e Matteo Zoppis], que é toda uma outra perspetiva de como o cinema pode ser estruturado: é uma espécie de lenda, em que o homem procura um tesouro e a chave para esse tesouro é um caranguejo. É um filme que tem lugar no festival. Embora use a mitologia, essa estrutura mitológica encontra um caráter mitológico nos territórios de Itália e da Argentina, das próprias pessoas que contam a lenda. O filme parte de um grupo de idosos italianos que conta uma lenda e depois como essas camadas se vão imiscuindo na realidade e também na imaginação.  

 

Viram quantos filmes durante a seleção para o DocLisboa?
Milhares. Ao festival, chegaram cerca de três mil filmes. Temos uma equipa de programação que vê os filmes e os discute. Vamos fazendo uma triagem que parte dessa discussão. Vemos várias vezes os filmes e tentamos criar um bom confronto na discussão. Estamos muito contentes, porque apesar de termos estado parados nestes dois anos, os filmes chegaram até nós. Alguns deles já tinham sido filmados e chegaram até nós de uma outra maneira. Apesar de ter sido um momento extremamente difícil, e de sobrevivência para algumas pessoas, os filmes chegaram, alguns deles – sabemos - foram feitos com muito custo.

Em relação ao projeto educativo, quais são os vossos critérios principais?
A nossa vontade maior no projeto educativo é trabalhar a programação do festival na sua complexidade, seja nas linguagens que traz, seja nas temáticas, e não tentar explica-las ao nosso público mais jovem, mas trabalhar com eles para que eles próprios possam traçar esse caminho e possam chegar ao cinema de uma forma mais próxima. Temos oficinas com um público mais pequenino, desde os três anos. E trazemos turmas para sessões para o festival, em que depois temos o realizador que discute com o programador com essas turmas das escolas. Essa é a nossa ideia para o projeto educativo. Não é uma questão de infantilizar o cinema mas construir ferramentas para que o público chegue aos filmes e que construa a sua própria visão sobre o que é o cinema e um festival de cinema e encontre o seu espaço.   

 

"As bilheteiras centrais da Culturgest e Cinema São Jorge vendem entradas para qualquer sessão do Doclisboa. No caso da Cinemateca Portuguesa, Cinema Ideal, Museu do Oriente e Cinema City Campo Pequeno apenas até ao dia anterior à sessão (no próprio dia, o bilhete deverá ser adquirido na respectiva bilheteira)", informa o DocLisboa no seu guia.

O programa do DocLisboa pode ser consuldato no site oficial do evento, neste link.

Nas fotos em cima: A-ha (em referência ao filme "a-ha The Movie") e Jacques Cousteau (através do documentário "Becoming Cousteau")