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Silvia Mendes
20 setembro 2019, 02:03
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Chris de Burgh: a elegância das emoções

Chris de Burgh: a elegância das emoções
Rúbel Viegas
Silvia Mendes
20 setembro 2019, 02:03
O músico irlandês reencontrou-se com o público português esta noite no Campo Pequeno, em Lisboa. Como um bom marinheiro, de Burgh levou o público a bom porto por um mar de canções sem idade.


O bom porto será algures ainda numa terra imaginária, só de gente boa, num mundo que talvez nem precise de ser idílico, apenas melhor. Um lugar onde há espaço para o conforto das boas memórias, canções, uma guitarra, um piano e um contador de histórias ora mais solene, ora interventivo, ora carregado de ironia. Chris de Burgh, que fala com o público com os sotaques da Irlanda, da gentileza e da inteligência, levanta-se, quando está sentado ao piano, para agradecer no fim de cada canção. Aos setenta anos, depois de muitos ventos e marés, de Burgh continua a navegar no mar imenso das canções que criou e a ser fiel à arte e às causas que o movem com a mesma honestidade e coerência há quatro décadas. 

"Em qualquer forma de arte, seja na música, pintura, escultura, poesia, literatura... para  transmitir emoção, temos de sentir emoção. Tão simples quanto isso", escreveu recentemente nas redes sociais. Simples e emotiva. Foi assim a noite de hoje no Campo Pequeno.

O músico e compositor irlandês subiu ao palco de sorriso aberto. Debaixo de aplausos, de Burgh acenou ao público, pondo a outra mão ao peito para mostrar gratidão pelo reconhecimento. No fundo de palco esteve sempre o desenho da rosa que decora a capa do mais recente disco, "A Better World". Depois de saudar os que estavam na sala lisboeta, entregou-se, sem demoras, aos acordes da guitarra para o primeiro tema, 'The Road To Freedom'. No palco despido - mas cheio de intenção e alma - havia apenas um foco de luz a recortar a figura de Burgh e a incidir nas primeiras emoções do concerto. Ainda agarrado à guitarra, o músico continuou a dedilhá-la com a cumplicidade que só existe entre os amigos de longa data. Ouviu-se 'Waiting For The Hurricane'. 

Com quarenta anos de carreira e mais de vinte discos editados, escolher as canções para o alinhamento de hora e meia não deve ser coisa fácil. Chris de Burgh não é homem para se recostar com a glória de êxitos passados. É um artista em movimento, pouco dado a águas paradas, ou não tivesse quase trezentas canções guardadas no seu espólio criativo. A bem da verdade, também não resiste aos desejos de quem o segue. Entrega-se com carinho às vontades do público, e se o público pede os velhos hits, o público tem. A noite foi então para ouvir as canções mais emblemáticas da vasta discografia que assina, sem esquecer uma das canções do disco mais recente que lançou em 2016, um exemplo mais fresco da vontade em continuar a criar.

"Obrigado. Boa noite", foram as primeiras palavras que dirigiu ao público. "Tenho uma mensagem para vocês", continuou de Burgh que fez questão de transmitir a mensagem em português. "Estou muito feliz por estar novamente em Lisboa. Portugal é um dos meus lugares preferidos". De volta ao inglês, continuou: "Portugal, tenho tido saudades tuas". A bonita e sentida declaração de saudade denunciou o tema que veio a seguir. 'Missing You', em formato acústico, foi celebrado e aplaudido pela plateia que prontamente ajudou nos coros.

"Muito obrigado", disse de Burgh, novamente em português, enquanto se acomodava com elegância ao piano agora para tocar uma do espólio do rei, Elvis Presley. Com a voz delicada, quase sussurrada, apresentou a canção com a nobreza que merece. O único foco de luz manteve-se, o silêncio respeitador da plateia e a quietude geral, para absorver todas as partículas de 'Always On My Mind', também. 
 


No alinhamento, seguiram-se clássicos como 'Moonlight and Vodka', 'Sailing Away', 'The Hands Of Man', 'There Goes My Heart Again', 'Where Would I Be' ou 'Sailor', tocados entre a partilha de aventuras turísticas por Lisboa, agradecimentos e piadas francamente divertidas. Sempre com um humor acutilante, inteligente e, por vezes, interventivo, Chris de Burgh salientou, por exemplo, algumas semelhanças entre Portugal e a Irlanda. "Irlanda e Portugal são muito parecidos. Ambos têm um irmão grande ao lado, mas a Irlanda tem um irmão com um primeiro-ministro louco", referindo-se ao atual primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que acabou por imitar imaculadamente durante alguns segundos. O momento caricato provocou gargalhadas dignas dos melhores clubes de comédia.   

De volta às canções, era tempo para decifrar "um dos maiores mistérios do universo". Como disse de Burgh, os mistérios insondáveis do coração de uma mulher, claro. Ouviu-se 'Woman's Heart' desta vez com batimento acústico.
 
'Homeland' foi a única passagem pelo álbum mais recente, o tal que versa sobre a ideia de um mundo melhor, arrumado com justiça e com vista desafogada para o melhor da humanidade. À guitarra, Chris de Burgh pediu-nos para "ver" o mundo pelos olhos dos refugiados, dos que arriscam na dura travessia para terra desconhecida à procura de salvação. Oscilando entre a calmia e a agitação instrumental e vocal impiedosa, a lembrar o ciclo do mar, o fim da canção desaguou já no piano. A voz de Chris de Burgh acalmou para o verso final: "há sempre esperança no coração humano para dias mais felizes no futuro". A emoção com que entregou a mensagem fez-nos acreditar que sim. 

'Borderline', outra entre as mais esperadas da noite, mostrou a amplitude invejável da voz de Chris de Burgh. "Cantei com a mesma nota com que gravei esta canção", disse no final. O público aplaudiu de pé a proeza vocal. Ninguém duvidou.

Para 'Lady In Red', estava guardado um momento especial, não sem antes de Burgh dizer com humor "agora algo completamente diferente". O clássico, que ninguém quer esquecer, foi cantado no meio da plateia, entre abraços e fotografias. 'Don't Pay The Ferryman' e 'High On Emotion' meteram o público a aplaudir fervorosamente.

'Muito obrigado. Boa noite", foram as palavras que ficaram para a despedida que o Campo Pequeno não permitiu. Queria mais. Como quem manda é o público, ainda houve mais uma, ou melhor, duas. 'Where Peaceful Waters Flow' e uma versão inesperada de Roy Orbison para um final de festa.

"Quando comecei não imaginava que fosse tocar durante tanto tempo. Não conseguiria se não fosse o apoio de pessoas como vocês", confidenciou com uma clara vontade de voltar a Portugal. 

O concerto acabou em águas calmas, em bom porto, e em "festa", como disse. O fim foi com uma versão festiva de 'Pretty Woman'. Muitos saltaram da cadeira para dançar.