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Reportagem: Peter Café, a história de quem passa

No meio do Atlântico há um espaço que junta navegadores, transeuntes, curiosos e pessoas com apetite.

Gonçalo Câmara

Perto do porto da Horta, na ilha do Faial, encontra-se um dos cafés mais conhecidos dos Açores: o Peter Cafe Sport. Mais do que um café, é lugar de histórias contadas e histórias por contar. 

No início do séc. XX, o espaço que até então se dedicava ao comércio de artesanato, passou também a vender bebidas, permitindo ao proprietário estar mais perto de todo o movimento que o porto gerava como único local de entrada e saída de pessoas e bens da ilha. 

A história do Café Sport é, na verdade, a história da família da Mariana Azevedo, filha do José Henrique, dono do espaço, com quem falei e a quem pedi que nos contasse um pouco do tempo que percorreu o espaço. A escolha do nome prendeu-se com a paixão de Henrique Azevedo - bisavô da Mariana - pelo desporto, tendo sido praticante de futebol, ténis e polo aquático. Estes desportos foram muito influenciados pelas companhias internacionais que se estabeleceram na cidade da Horta durante o período da primeira guerra mundial, devido à existência dos cabos submarinos.  

O nome "Peter" surge apenas na Segunda-Guerra Mundial, quando José Azevedo - avô da Mariana, trabalhou para um navio inglês que se encontrava atracado no Porto da Horta. Aqui foi criada uma grande de amizade com o oficial-chefe do navio inglês Lusitânia II, que um dia lhe perguntou se poderia começar a chamá-lo de "Peter", porque fazia lembrar muito o seu filho que estava em Inglaterra, sendo assim uma forma de se sentir mais perto de casa.  

O final dos anos 50 e o início da década de 60 trouxe ao Faial e ao seu porto um novo tipo de visitantes: os tripulantes das embarcações de recreio que, por desafiarem os perigos dos mares em veleiros por vezes minúsculos, receberam dos faialenses o nome de "aventureiros". Com o começo da tradição da paragem na Horta de quem atravessa o Atlântico em navios de recreio, surgiram também novos desafios e burocracias, exatamente como aconteceu em março de 2020, com a situação da pandemia, em que os barcos e as suas tripulações eram obrigados a "ficar de quarentena". 

Quem entra no Peter repara imediatamente em todos os adereços que forram aquelas paredes de madeira: souvenires dos marinheiros que por lá passaram. Diz a Mariana que há uma série de superstições associadas à tradição de navegação na Horta. A mais importante é, sem dúvida, o desenho na marina. A lenda afirma que se não deixarem a sua marca na mais colorida marina do mundo, a viagem não irá correr bem. A outra é passar pelo café deixando algo nas paredes como bandeiras assinadas. 

Uma das coisas mais simples e saborosas do Peter é o gin e a tosta mista. "Vir ao Peter e não provar o gin é como ir a Roma e não ver o Papa", explica-nos a Mariana. Das experiências mais interessantes que se pode ter no Peter é ouvir todos os dialectos que se falam dentro daquelas paredes. Mais engraçado ainda, explica-nos, é quando duas pessoas conversam sem falarem a língua uma da outra, o que acontece com muita frequência. Acabam por se entender, muitas vezes melhor, depois de uns gins. O convívio com o mar por perto. 

Muitos foram os navegadores que escreveram sobre o Peter nas "bíblias náuticas" e que tornaram o espaço famoso: Eric Tabarly, Jacques Yves Cousteau; Bernard Moitessier; Joshua Slocum; HW Tilman, entre muitos outros. Há muitos marinheiros e turistas que, depois de visitarem os Açores, se apaixonam de tal forma pelas ilhas que se mudam de vez. Há, inclusive, muitas comunidades de estrangeiros à volta da ilha. Dos casos mais caricatos que a Mariana conhece, é o caso de um iatista alemão que encalhou o barco numa encosta da ilha. Por absoluto acidente, ficou com o barco destruído e enquanto aguardava para o arranjar, acabou por se apaixonar pelo Faial, onde vive cá há dois anos e meio. 

O melhor da esplanada é o privilégio de ver esse pequeno milagre que é o nascer do Sol atrás da montanha do Pico. Mesmo que não seja madrugador, a vista mantém-se com a montanha firme ao alcance do olhar. Uma presença imponente como quem protege quem a contempla, saboreando.

Entre Março e Junho de 2020, nenhum iatista pôde entrar na cidade da Horta, nenhum iatista pôde, na verdade, entrar em grande maioria das marinas à volta do Mundo. Agora imagine-se na mesma situação: está no meio do mar, isolado. Os mantimentos não são infinitos como pode calcular, a água e comida estão a acabar. Só querem vir a terra buscar o que precisam, porque não têm mantimentos suficientes para voltar para casa, mas não podem. Nas Caraíbas, há inclusive relatos de ameaças com armas de fogo, caso pusessem os pés em terra, para perceber a gravidade da situação, conta-nos a Mariana.

O Peter recebeu um telefonema de um navio escola que estava no porto. Não pôde entrar em terra e não pôde comprar comida para os 30 adolescentes que lá aprendiam a viver no mar. A solução foi simples: ajudar exatamente da mesma forma que ajudaram há cerca de 70 anos. Foi criado o movimento a que os Franceses chamaram de "La Résistance". Um serviço gratuito de entrega de comida, água, gasóleo, medicamentos, tudo aquilo que precisassem. Também foi servida comida do restaurante, o que acabou por ajudar o espaço a sobreviver à pandemia. Em cinco meses de operação, há um mar aberto de histórias. Foram cerca de 800 os barcos a quem a equipa do Peter estendeu a mão. 

Para terminar, é a Mariana que faz o convite: "são 100 anos de uma casa de família no meio do mar, com milhares de histórias por contar. O que é que está à espera?"

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