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Viagem à Bélgica: da pintura flamenga à BD

Há ainda um fôlego final para a brilhante geração comandada pelo médio Kevin De Bruyne.

Gonçalo Palma

A Bélgica teve uma das melhores seleções de futebol deste século, mesmo que não tenha ganho quaisquer títulos. Há ainda resquícios dessa grande equipa, os suficientes para se prever mais uma campanha longa no Mundial. 

A despedida de uma grande geração
Já cheira a adeus esta grande geração belga, que ganhou visibilidade a partir do Mundial de 2014. Só dois jogadores dessa colheita dourada se mantêm firmemente entre os melhores do mundo da atualidade: o guarda-redes do Real Madrid, Courtois, e o médio Kevin De Bruyne, premiado como o melhor jogador da Premier League em dois dos últimos três anos com a camisola do Manchester City - curiosamente, ambos foram campeões belgas pelo mais pequeno Genk, em 2010-11. Na curva descendente, parecem estar Eden Hazard (que raramente tem jogado pelo Real Madrid), os ex-benfiquistas Axel Witsel (desde há poucos meses no rival Atletico Madrid) e Vertonghen (agora no Anderlecht) ou o ponta-de-lança Dries Mertens (do Galatasaray), mas que permanecem como ativos da equipa A do país. Há ainda o ponta-de-lança lesionado Lukaku (do Inter de Milão), que foi uma incógnita até ao anúncio da convocatória pelo selecionador Roberto Martínez, treinador responsável pela melhor participação de sempre da Bélgica em Mundiais, com um 3º lugar em 2018. Fizeram parte desse feito o lateral-direito do Borussia Dortmund, Thomas Meunier, ou o ponta-de-lança Batshuayi, que trocou há poucos meses o Besiktas pelo Fenerbahçe. Estes dois estão também prontos para o Catar 2022.

 

Os finais nos oitavos

Apesar da Bélgica ter tido já um número elevado de qualificações para o Mundial - o Catar 2022 vai ser a 14ª presença dos "Diabos Vermelhos" -, a seleção só atingiu um lugar de pódio em 2018. Antes, o melhor que tinha conseguido havia sido um 4º lugar com uma equipa de topo no México '86. Nessa campanha, consta um dos jogos mais memoráveis da história do Mundial, o longo e emocionante 4-3 (após prolongamento) que eliminou a União Soviética de um Belanov em grande forma.
 
Há uma tendência crónica para a eliminação da Bélgica nos oitavos-de-final ou para o posicionamento entre o 9º e os 16º lugar: em 12 participações no Mundial, a Bélgica ficou-se por esta fase por oito vezes. A equipa vermelha viu fugir por pouco o título europeu de 1980, com um golo a dois minutos do fim do alemão Hrubesch. Mas a seleção masculina pode gabar-se de uma medalha de ouro olímpica em 1920, quando os melhores do mundo ainda jogavam nesta competição, aproveitando bem o factor casa na Antuérpia, a cidade anfitriã dessas olimpíadas.
 
Tal como em Portugal, também há três grandes na liga belga, mas divididos por três cidades diferentes: o hegemónico Anderlecht (da capital Bruxelas), o Club Brugge (de Bruges) e o Standard Liège. Todos estes clubes já venceram competições europeias, mas nunca a mais desejada: a Taça dos Campeões Europeus. Nem mesmo o Anderlecht. Mas houve ainda um clube que surpreendeu tudo e todos em 1987-88, o Mechelen (ou Malines), que ganharia surpreedentemente a Taça dos Vencedores das Taças.
 
Nessa equipa-surpresa, estava na baliza um tal de Preud'homme, que recuperaria o estatuto de guadião da seleção e que deixaria um imagem de superhomem no Benfica na segunda metade dos anos 90. Mas há mais As belgas que passaram por cá, como o defesa central Demol que mostrou no FC Porto ter sido um especialista na conversão de penaltis na época de 1989-90; ou o guardião Filip De Wilde, dono da baliza leonina entre 1996 e 1998. Houve ainda um belga que mesmo não sendo A, era um ás no ataque do Portimonense nos anos 80: falamos do saudoso Serge Cadorin.   

 
 
A chanson também é belga

Da Bélgica francófona, vêm alguns dos nomes maiores da chanson. O maior vulto deles é Jacques Brel (1929-1978), que sabia despejar todas as emoções de uma relação numa só canção; depois, nova canção, nova vida sofrida, com a devida interpretação dramática. Bastaria a sua mímica gestual para nos impressionarmos, mas Brel tinha ainda a voz e palavras fortes. Também da Bélgica, vem outro senhor da chanson, Salvatore Adamo, que conquistou muitos corações de adolescentes nos anos 60. No início dos anos 80, os Telex tinham qualquer coisa de interessante para dizer sobre o synth-pop, com a sua visão, ou com a sua 'Eurovision', o tema que levaram ao Festival da Eurovisão em representação do seu país, mas o objetivo de ficar em último foi destruído pelos 10 pontos dados pelo júri português. Mais eurodance que eurovision eram os Technotronic, que agitaram as pistas de dança em 1989 e 1990 com 'Pump Up The Jam'. Também na viragem dos anos 80 para os 90, os Vaya Con Dios romperam fronteiras com o seu trato mais jazzístico e lúdico da folk, à custa de êxitos como 'Nah Neh Nah'.
 
Poucos anos adiante, outra banda belga invade também a MTV Europe, mas mais nos programas de rock alternativo. Referimo-nos aos dEUS, autêntica frente criativa de gente saída das galerias de arte para uma garagem, de onde de repente saíram canções. Ainda hoje o público português aclama o caos desvairado da banda de Tom Barman. Mas o rock alternativo belga tem antecedentes. Que o mundo tenha dado conta, havia os Plastic Bertrand que durante a new wave nos deu 'Ça plane pour moi'. Mais no ramo da world music, os Zap Mama despem o hip hop e o r&b à sua essência que, se descobre, é africana, mas dando também guinadas para o futuro. É na Bélgica que há um dos festivais de verão mais históricos, o Rock Werchter, que permitiu aos belgas ver algumas das grandes bandas internacionais prestes a explodirem, como os Talking Heads, os U2 ou os Pixies.
 
No plano mais erudito, o pianista Wim Mertens tem sido mais do que um cantor com bons agudos, tem também sabido conduzir ensembles - é presença frequente em palcos portugueses. A Bélgica tem conseguido ter alguns ícones do jazz como o mestre da harmónica Toots Thielemans ou em tempos mais idos o guitarrista cigano Django Reinhardt (1910-1953). O jazz tem a agradecer a este país a invenção do saxofone, por Adolph Saxe, em 1840: um instrumento metalizado com uma palheta de madeira junto à boquilha. Charlie Parker, John Coltrane ou Ornette Coleman foram alguns dos monstros deste instrumento, também muito usado no rock.
 


     
Velhos são os trapistas

Sempre que se fazem listas dos países com melhores cervejas, a Bélgica aparece normalmente no topo. A cultura deste supremo néctar de cevada (ou de trigo, já lá iremos) é já ancestral no país e provém dos monges das ordens trapistas. É dentro dos mosteiros que fermentam algumas destas cervejas, chamadas de trapistas por causas destas ordens religiosas. Algumas existem há mais de 400 anos, como a Rochefort. A Chimay (já do século XIX) ou a Westvleteren são outras trapistas que os fãs de cerveja portugueses bem conhecem dos vários bares e até das prateleiras dos supermercados. Mas há outras cervejas belgas bem diferentes, mas igualmente apreciadas. Uma das mais invulgares é a Hoegaarden, uma cerveja de trigo com quase aparência de refrigerante (por não ser tão espumosa) e onde se recomenda o uso de uma rodela de limão. Entre as cervejas loiras, a belga mais presente entre nós é a Duvel. Entre as pilsners, a de grande distribuição mundial é a Stella Artois. Com tanta variedade de cervejas, cada marca pede um copo específico. Mas a maioria adquire a forma arredondada de balão, sempre com pé vistoso, como se fosse uma taça.
 
E o que é a cerveja acompanha? Ou melhor, e o que é que acompanha a cerveja? Bom, os belgas preferem os moules frites, de longe o mais famoso prato do país. Os moules são os mexilhões (refogados numa caçarola), os frites são o pratinho ao lado de batatas fritas, a grande invenção gastronómica belga para o mundo (pelo menos, assim o reclamam), apesar dos norte-americanos lhes chamarem de french fries. As batatas são cuidadosamente fritas e servidas em quiosques, chamados de friteries, em cones de papel, com maionese ou ketchup e acompanhadas por uma salsicha. As couves-de-bruxelas vêm mesmo da zona de Bruxelas e ainda hoje há grandes plantações na região deste produto que usamos tanto na nossa cozinha.
 
Além das batatas fritas, serve-se muito nas ruas belgas os gaufres, que o mundo anglo-saxónico conseguiu generalizar com o nome de waffles. Esta massa de farinha e ovos prensada aos retângulos, e que se vê um pouco por todo o lado, é já só por si saborosa, nevada de açúcar em pó e canela. Mas os belgas esmeram-se também nas próprias coberturas (frutas, chantilly, creme de chocolate). Os gaufres de Liège têm particular boa fama. Ainda melhor fama têm os chocolates belgas, sobretudo os das chocolatarias do país, com montras de sonho, como acontece em Bruxelas com o caso do prestigiado chocolateiro Pierre Marcolini. A nível de marcas, talvez a Guylian, conhecida pelas caixas de conchas de chocolate, seja a que se mais propagou pelo mundo.

Alguns dos comes & bebes belgas podem ser usufruidos na nossa restauração. Dois deles, da mesma cadeia, são o Moules & Beer (em Campo de Ourique, Lisboa) e o Moules & Gin (em Cascais), onde, como dá para perceber pelo nome, a especialidade é o moules frites, e onde não falta a mais do que recomendável cerveja belga. Aqui quem se lixa é o mexilhão, não é o cliente. 

 

Educação visual
 
A Bélgica é conhecida em todo o mundo pela sua banda desenhada. Perde-se até a noção do número de personagens universais que a BD do país criou. Um dos mais célebres é sem dúvida Tintin, o repórter com ar de garoto imaginado por Hergé (1907-1983), com um topete capilar que resistia imperturbável às mais radicais aventuras. A bonecada azulada dos Estrumpfes (ou Smurfs), de Peyo (1928-1992), invadiu não só os livros aos quadradinhos como também os nossos quartos, com vários brinquedos alusivos, incluindo a casa em forma de cogumelo, com aquelas janelas e porta impecavelmente tortas. Lucky Luke, a paródia western do homem mais rápido que a sua sombra, é outra criação belga, da cabeça de Morris (1923-2001), que o mundo também adorou. A figura desengonçada de Gaston e a dupla Spirou e Fantásio são outras provas do humor belga aos quadradinhos. Mas há uma outra literatura belga, especialmente vinda da Flandres, como o Nobel da Literatura, Maurice Maeterlinck (1862-1949), ou o escritor que deveria ter sido Nobel, Hugo Claus (1929-2008), morto por eutanásia. O maior escritor de policiais é Georges Simenon (1903-1989), criador do detetive Jules Maigret, mas não de Poirot, que era também detetive, belga até, mas inventado pela inglesa Agatha Chrtistie.  
 
Os premiadíssimos irmãos Dardenne (repetentes da Palma de Ouro de Cannes) representam o que há de melhor no cinema belga. Eles têm sido uma espécie de UNICEF atrás das câmaras, com um olhar especial para com as crianças, especialmente as órfãs. Mas a sensibilidade social da dupla cineasta alarga-se a outros desfavorecidos. Mais virado para as artes marciais é o ator Jean-Claude Van Damme, que levou o seu passado de kickboxer para o cinema de Hollywood… Que os belgas sabem contar histórias através de imagens, quer através da banda desenhada, quer através do cinema, já tínhamos percebido. Mas o país tem um passado de imagem desde os tempos do Renascimento, na pintura flamenga como Jan van Eyck (século XV), Rogier van der Weyden (século XV), Pieter Bruegel, O Velho (século XVI), ou Jan Brueghel, o Velho (século XVII). Peter Paul Rubens (século XVII) no barroco e René Magritte (1898-1967) no surrealismo mantiveram a beleza da pintura do país. É bom ver que os belgas também sabem desenhar plantas de casas. Um dos melhores exemplos é Victor Horta (1861-1947), nome proeminente da Art Nouveau, que embelezou Bruxelas e outras cidades belgas com os seus edifícios, escadarias e vitrais sumptuosos na viragem do século XIX com o XX. Henry van de Velde (1863-1957)  foi outro arquiteto e designer belga revolucionário da Art Nouveau.
 
Noutras arquiteturas, o Grand Place, em Bruxelas, é outra bênção para a vista, com os seus prédios antigos, por muito que a capital belga tenha outras atrações como o Átomo de Bruxelas ou o Mannekin Pis, a fonte do menino que urina água. Mas a cidade mais bonita é claramente a maneirinha Brugges, uma autêntica fábula que, por causa dos canais, disputa com Amesterdão o título de "Veneza do norte". O peso histórico de Antuérpia faz-se notar nos numerosos monumentos. Não devemos só aos belgas as invenções da batata frita e do saxofone. Também devemos-lhes a invenção dos patins, graças a John Joseph Merlin em 1760. Outra inovação veio daqueles lados por via do cartógrafo Gerardus Mercator que revolucionou no século XVI a forma como passámos a ver os mapas.
 
É belga um dos melhores ciclistas de sempre, Eddy Merckx, uma autêntica lenda na estrada nos anos 60 e 70, que ganhou cinco tours de France, cinco giros de Itália e uma Vuelta a Espanha, a acrescentar a três títulos mundiais. No ténis feminino, a Bélgica foi bafejada na década passada por duas atletas superiores, vencedoras de vários Gands Slams, como Kim Clijsters e Justine Henin, esta última campeã olímpica. Aliás, medalhas de ouro foi algo que o país foi celebrando nas Olimpíadas, nas modalidades mais díspares, desde o judo (Robert Van de Walle) à natação (Frédérik Deburghgraeve) e ao atletismo (a saltadora em altura Tia Hellebaut e o meio-fundis dos 3000 obstáculos Gaston Roelants).