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Viagem ao Irão: dos tapetes persas ao cinema

Será que o peso mitológico da velha Pérsia se arruina diante do eixo inimigo ocidental, como se fosse uma Persépolis em forma de onze?

Gonçalo Palma

Herdeiro de uma civilização milenar habituada a geometrias elaboradas (seja na arquitetura, seja nos tapetes persas), que losangos e retas conseguirá desenhar o português das diásporas Carlos Queiroz para ser um dos dois melhores do Grupo B? Para mandar para fora do tapete (persa ou não) uma das potências ocidentais (Inglaterra ou Estados Unidos), também podem perguntar aos grandes lutadores olímpicos iranianos como se faz.

Um iraniano no Porto, um português em Teerão
Há um avançado da seleção iraniana que os portugueses conhecem bem, sobretudo os portistas: Mehdi Taremi. O ponta-de-lança não tem apenas altura (1m87) e vigor físico, tem também um enorme talento com os pés e inteligência coletiva. Com uma média de 20 golos por ano em Portugal desde que chegou a Portugal, para jogar no Rio Ave, é também um jogador que provoca o golo e um mestre nas assistências.
Mas o ataque iraniano tem outros trunfos que contribuiram para o Irão ficar acima da rival Coreia do Sul no grupo asiático de qualificação para o Mundial. Sardar Azmoun, do Bayer Leverkussen, é o maior goleador no ativo ao serviço da seleção, com mais de 40 golos. E há ainda um traquinas que desgasta as defesas contrárias, o extremo Jahanbakhsh, do Feyenoord. Lá atrás, o defesa central Majid Hosseini (ligado ao clube turco Kayserispor) é o zelador de segurança da equipa.
Quem voltou a um país que bem conhece é o nosso treinador mais viajado Carlos Queiroz, que já treinou em quatro dos cinco continentes. Hoje, sob o seu comando técnico, pode levar o Irão ao feito inédito de passar à segunda fase do Mundial, depois de cinco tentativas goradas pelo país. Apesar da gigante Inglaterra, há condições para isso. Se repetirem a vitória contra os Estados Unidos do Mundial de 1998, talvez a estada no Catar se torne mais longa.


Ali Daei, um dos maiores goleadores de seleções de sempre

A paixão dos iranianos por futebol é desmesurada. Tão desmesurada que é tudo à grande. Tiveram o internacional A que mais golos marcou em todo o mundo, Ali Daei, com 109, marca só superada em 2021 por Cristiano Ronaldo. E é no Irão que está um dos maiores estádios de futebol do mundo: o Azadi, em Teerão, que chegou a ter capacidade para mais de 100 mil pessoas. Foi no Estádio Azadi que o Irão celebrou o terceiro título de campeão asiático seguido, em 1976, com um livre direto do mítico Parvin, que levou à loucura a centena de milhar de compatriotas presentes nas bancadas em Teerão.

Não é só o selecionador do Irão, Carlos Queiroz, que conhece bem a vivência persa. Vários treinadores portugueses têm passado pela liga iraniana, a Persian Gulf Pro League. A passagem mais carismática foi a do ex-benfiquista Toni pelo Tractor, não pelos títulos, mas pela empatia que criou com os adeptos. Outro veteranos das diásporas, Manuel José, também já passou pelo Irão. Mas quem foi campeão foi Nelo Vingada, pelo Persepolis.

 

A grande clássica oriental

Dos três tipos de música no Irão, a clássica, a folk e a pop, a Revolução Islâmica de 1979 liderada por Khomeini baniu a última e beneficiou as restantes duas, determinando o regresso às raízes culturais da música iraniana e obrigando os músicos pop a exilarem-se no estrangeiro.

A mais majestosa das músicas é a clássica iraniana, talvez a música erudita oriental mais imponente de todas, que combina ensembles e grandes orquestras com o recurso a instrumentação tipicamente local. É música aristocrática, com instrumentistas vestidos nobremente, com muita carga poética e muito ligada à tradição do país. Neste género, sobressai o tahrir, um estilo de canto que exige uma enorme projeção vocal em vários tons e em grandes ondulações, ao estilo muçulmano. Não faltam grandes cantores persas. O maior é talvez Mohammad-Reza Shajarian, banido atualmente do Irão por ser um opositor de Ahmadinejad. O tenor curdo Shahram Nazeri é outro dos cantores mais lendários, sempre faustosamente acompanhado por orquestra. A maior representante feminina é Parisa, mulher lindíssima nos anos 70, com uma voz hipnótica. Mas a Revolução Islâmica afastou-a dos palcos.

Tão ou mais carismáticos que os músicos, são os vários instrumentos tradicionais como o setar (objeto de cordas de cabo fino e longo), o santur (espécie de dulcimer, uma mesa de cordas baquetada), as neys (flautas arabescas) ou o tombak (tambor de batucada oriental, tocado sobre os joelhos e que exige um grande manuseamento rítmico). Mas o mais reconhecido é o kamancheh, instrumento de três ou quatro cordas (varia) tocado com um arco - espécie de violino, com agudos mais orientais. O instrumento é hoje Património Imaterial da UNESCO.


Ensopados em borrego

Mais de cinco mil quilómetros separam Portugal do Irão mas apesar da distância, vários coisas nos unem nos paladares, como o fascínio comum por marmelada e o hábito de ver o algodão doce em pauzinhos. O próprio pudim de açafrão (sholez zard) é uma espécie de arroz doce mas mais aromático e trabalhado, com águas de rosa e açafrão, sendo que o arroz usado é o mais refinado basmati.

Até há, como em Portugal, ensopado de borrego, o popular khoresh-e-qeyme, de influência curda, mas com outras variantes. Aliás, num país tão grande como o Irão, o que não faltam são várias variantes sobre os mesmos pratos. Mas a paixão pela carne de borrego, essa vai de norte a sul, especialmente através dos kebabs - ou espetadas (se preferirem)

O sumo de lima ou o molho de iogurte costumam molhar os pratos, onde a carne de frango também é muito consumida. A gastronomia iraniana é muito rica em sopas, algumas delas feitas em leite e em molho de iogurte. Uma das sopas iranianas que talvez os portugueses estranhem menos são as adasi, a sopa de lentilhas (igualmente popular na Turquia e na Síria).

Na doçaria, os frutos secos como os pistachos, as nozes ou as amêndoas são recorrentes. É o que acontece com o nougat persa, proveniente de Yazd, no centro do Irão, epicentro da doçaria iraniana, e onde são muito populares as baclavas (feitas de camadas de filo e também típicas na Arménia, Turquia e Grécia). Na sobremesa iraniana, os gelados persas têm também fama, pelos seus aromas de açafrão e de águas-de-rosa e cardamomo, decorados habitualmente por canela.

As bebidas alcoólicas são proibidas desde a Revolução Islâmica, num país com grande cultura de café e sobretudo de chá. No Irão, quando faz calor, abundam os refrescos. Um dos mais tradicionais é o sekanjabin, uma bebida açucarada e avinagrada de menta. Os iogurtes líquidos (dooghs) e os sumos de fruta, sobretudo de romã, também refrescam muitos iranianos.


A frescura da velha Pérsia

Têm boa fama em Portugal os tapetes persas, afamados pelos seus desenhos e padrões elaborados, tecidos à mão. Há tapetes persas, sobretudos os de seda, que custam mais de 300 mil euros, mas a maioria são de lã. Os tapetes persas são tão belos e valiosos que na Europa têm sido muitas vezes usados de forma decorativa, em cima de arcas ou em paredes, e não tanto no chão.

Outra herança da velha Pérsia é a sumptuosidade da arquitetura, da era pré-islâmica, em templos ou em masoléus, e resiste hoje em ruínas, sobretudo em Persépolis, a cidade que o exército de Alexandre Magno destruíria no século IV antes de Cristo, e que é hoje Património Mundial da UNESCO. A imponência artística da arquitetura persa prolongou-se na era islâmica, em mesquitas e bazares. Também é da velha Pérsia que vem o imaginário dos Jardins do Éden, ou melhor dos jardins persas, autêntico idílio num espaço verde e fechado, deslumbrante e espiritual. Árvores e muros que criem sombras, além de lagos e piscinas, são alguns dos elementos essencias nos jardins persas.

Os fãs do cinema de autor estão bem familiarizados com o cinema iraniano, que tem como um dos embaixadores maiores Abbas Kiarostami (1940-2016), num estilo de fusão entre ficção e documentário que se tornou muito comum na criação cinematográfica do seu país, nomeadamente noutros grandes cineastas como o duplamente oscarizado Asghar Farhadi, Mohsen Makhmalbaf e Jafar Panahi. Esta habilidade de contar uma história simples com uma autenticidade neo-realista também tem merecido a sensibilidade feminina de mulheres como Samira Makhmalbaf e Marjane Satrapi. Esta última está ligada a uma velha tradição do país, o cinema de animação iraniana que tem como antecedente milenar a animação de velha cerâmica persa. A rebelde Marjane Satrapi adaptou para a grande tela a sua BD autobiográfica "Persépolis", onde narra os horrores do regime de Ayatollah Khomeini, alguns deles sobre a própria família, como a morte do seu querido tio Anoosh, executado e despejado numa vala comum.

Num país dado à mitologia, a fauna da sua vida selvagem deu espécies animais que só não são mitológicas porque existiram mesmo de verdade mas que não escaparam à extinção como os tigres persas (mais robustos que outras raças de tigres e mais migratórios), os leões persas ou, de tempos mais antigos, os elefantes sírios, vítimas da ganância e do exibicionismo dos caçadores. Há mais subespécies em perigo como os leopardos persas ou as chitas asiáticas, mas que habitam em áreas naturais protegidas, num país com uma vida selvagem rica, que tem nas suas terras ursos, chacais (necrófagos como as hienas) ou os gamos persas. Por cá, a subespécie oriunda do Irão mais conhecida é de longe o gato persa, cuja única característica que mantém dos tempos idos da Pérsia é a sua pelagem longa e fotogénica.  

A nação berço do pólo, o desporto equestre coletivo mais famoso do mundo e popularizado no Reino Unido e na Argentina com outras regras, tem conquistado uma série de medalhas olímpicas em halterofilia e em luta. O halterofilista mais imortalizado é o bicampeão olímpico Hossein Rezazadeh (medalha de ouro em 2000 e 2004). Outro repetente do lugar mais alto do pódio olímpico foge às duas especialidades iranianas, falamos do taekwondista Hadi Saei (campeão olímpico em 2004 e 2008), talvez o mais consagrado desportista iraniano de sempre.