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Viagem ao Senegal: dos baobabs aos batuques

A estrela Sadio Mané é já o grande ausente do Mundial. O que é que sobra da seleção a partir desta perda tão pesada?

Gonçalo Palma

Berço de um dos maiores músicos africanos (Youssou N'Dour) e de uma das árvores mais impressionantes (os baobabs), o Senegal também é uma nação apaixonada pelo desporto-rei, que tem dado ao mundo um dos melhores futebolistas da atualidade, Sadio Mané. Com a sua lesão e a sua ausência, a nação africana fica mais diminuida.

Sadio Mané e a sua brigada supra-30
Há uma estrela incontornável na seleção do Senegal, Sadio Mané (pois claro), mas a equipa africana está longe de se resumir ao seu nº10. Por alguma razão, são os atuais campeões de África (um título inédito no seu historial). Há uma veterania a acompanhar o também trintão Mané, como o lateral-esquerdo Saliou Ciss (atualmente sem clube), o central e autêntico polícia Koulibaly (do Chelsea) e o médio defensivo Nampalys Mendy (do Leicester). Mas as luzes da ribalta vão atrair-se mesmo pelo extremo do Bayern. Sadio Mané tem a malandrice infantil de um jogador de praia e, ao mesmo tempo, a pontaria para descobrir sempre onde está a baliza, por mais barreiras humanas lhe surjam pela frente. Para reforçar o seu espantoso currículo internacional, falta-lhe uma campanha mais longínqua no Mundial. Não merecia esta lesão.

 

O pico de 2002

Só por piada ou por aposta de risco se colocaria o estreante e desconhecido Senegal a derrotar, no jogo de abertura do Mundial de 2002, os campeões do mundo e da Europa: a França de Zidane, Henry e Trezeguet... Exceto se fosse a própria comitiva senegalesa, que conhecia muito melhor o adversário do que o adversário a eles: o selecionador do Senegal (Bruno Metsu) era francês e 21 dos 23 convocados jogavam em França. Mas a vitória do Senegal contra França aconteceu mesmo, iniciando-se uma campanha maravilhosa de golos e respetivas danças, fintas novas de El Hadji Diouf e outras traquinices, que só terminaria nos quartos-de-final, diante da Turquia. A sorte também teve um fraquinho pelos Leões, em alguns momentos decisivos, como no prolongamento dos oitavos-de-final diante da Suécia, quando Svensson atira ao poste esquerdo do já batido senegalês Tony Sylva mas a bola não faria abanar as redes; quatro minutos volvidos, o remate do histórico Henri Camara leva a bola a embater no poste direito da baliza sueca, para depois tabelar no interior das redes. Era o golo de ouro! O Senegal apurava-se para os quartos-de-final. Meses antes, esta seleção já tinha dado o aviso com uma presença inédita na final no campeonato africano das nações.
 
Esta seleção era tão boa que não havia espaço nos 23 para o melhor marcador da liga portuguesa de 2002-23, o avançado senegalês do Beira-Mar, Fary. Em 2001-02, tinha marcado 18 golos ao serviço dos aveirenses, número que repetiu no ano seguinte. O ponta-de-lança tinha começado a jogar em Portugal no quarto escalão nacional, no União Montemor, em1996. A ascensão deste homem com faro para o golo atingiu o cume quando se transferiu em 2003 para o então grande Boavista, acabadinho de ter sido semi-finalista da Taça UEFA e com a memória recente do título de campeão nacional em 2000-01.
 


 
Batucadas com cante

Um dos cantores africanos de maior fama mundial é um senegalês, Youssou N'Dour, mediatizado pelo dueto de '7 Seconds' com a sueca Neneh Cherry a meio dos anos 90. Mas Youssou N'Dour já tinha um peso histórico muito anterior e já com várias ligações inter-estilísticas e transcontinentais com outras estrelas da pop como Sting ou Peter Gabriel. N'Dour simbolizou o cosmopolitismo da música senegalesa, muito ligada à música cubana e ao jazz norte-americano, algo que a histórica Orchestra Baobab já fazia. Youssou N'Dour deu voz às expressões musicais do seu grupo étnico, os serereses - o terceiro maior grupo étnico do Senegal - sobretudo o njuup, ligado às suas crenças espirituais, muito assente na percussão, especialmente o sabar, que é um tambor que se toca com uma baqueta e com uma mão.
 
Outra tradição senegalesa é a chamada dos griots, espécie de sábios e contadores de histórias - ou até cantadores de histórias. Foi um griot que encaminhou o percurso musical de um dos maiores do Senegal, o falante de pulaar Baaba Maal, sempre interventivo por um mundo melhor, incluindo na sua querida África. Tal como com Youssou N'Dour, se a voz de Baaba Maal é bonita, a forma de cantar ainda é mais. Cheikh Lô é outro que tem internacionalizado a música senegalesa, às custas de influências de reggae na sua música tradicional.
 


 
Irmãos gastronómicos

Além da autenticidade africana, a cozinha senegalesa tem algumas influências de países europeus como França e até Portugal. Tal como por cá, também se come no Senegal feijão frade, usa-se muito o alho, acompanha-se os pratos com pão e há também uma predileção pelo arroz. Entre os muitos pratos de peixe, o mais conhecido é o arroz de peixe, muito similar com o nosso, também cozinhado em molho de tomate e, portanto, bastante avermelhado para a vista. Cozinham-se neste país africano muitos arrozes de carnes, mais até do que por cá, como de cordeiro ou de galinha. E até mesmo uma das sobremesas mais populares no Senegal é parecida com o arroz doce, só que é cozinhado em leite de coco. O couscous é também lembrado para os doces, o que poderiamos chamar de couscous doce, mas que os senegaleses nomeiam como thiakry.

O couscous é, aliás, muito usado na gastronomia senegalesa, um ponto em comum com a África árabe, além da rejeição da carne de porco - é de lembrar que o Senegal é, predominantemente, islâmico. Já a carne de galinha pode-se comer, dando corpo a um dos pratos mais famosos da nação, o yassa. A carne de galinha (acompanhada de caldo) é marinada em sumo de lima, mostarda, alhos esmagados e óleo vegetal, com uma cama de cebola, azeitonas, folhas de loureiro e, claro, muita pimenta e sal. É mais tarde frita em caldo de galinha. Há outros elementos gastronómicos comuns no país, como o amendoim (tal como na Guiné Bissau), a batata doce, as lentilhas, vários tipos de pimenta ou o gengibre. Este último é também usado em sumo... Diga-se, um dos muitos sumos do país. Há também sumos de graviola, de manga, e até de plantas em flor como o hibiscus, mais conhecido pelo nome de zobo: um refresco açucarado, previamente fervido nas ditas folhas e devidamente passado.


País de baobabs

O Senegal é o grande país dos baobabs, aquela árvore altíssima e de tronco tão gordo, que tem sido usada para tudo: desde casas a pubs. A casca da árvore tem efeitos curativos para tratar de febres e para prevenir malárias. Um dos mais ricos ecossistemas do país é o Parque Natural de Delta du Saloum, zona de baixios que serpenteia o mar, recheada de várias aves, como os flamingos. Na capital Dakar, com dois milhões de habitantes, as atrações são mais lúdicas como o Phare des Mamelles, o farol com vista para toda a cidade e que é convertido numa grande discoteca, imprópria para quem sofra de vertigens.

Era em Dakar, no seu grande areal, que desfilavam os vencedores do Paris-Dakar, a grande prova expedicionária do desporto motorizado que testava a sorte no deserto Sahara, mas que terminava com os sorrisos da criançada senegalesa junto das grandes viaturas de corrida. Mas essa era apenas uma aventura de forasteiros que, por acaso, terminava no Senegal. Se se quiser conhecer a fundo a cultura do país através do desporto, terá que se assistir a um combate de luta senegalesa que é um desporto de combate tradicional, orinda da etnia dos serereses. É um autêntico desporto nacional, com vários rituais voodoo e vestes tribais, onde ser-se vencedor significa ser estrela. Tanto pode ser disputado num areal de uma rua, como num grande estádio. No que respeita aos desportos convencionais, o Senegal é um dos países africanos mais competitivos no basquetebol internacional, habituado a disputar as grandes competições. A seleção masculina já foi campeã africana por cinco vezes, registo igual ao Egito e só abaixo de Angola.

A nível artístico, o primeiro cineasta africano negro de sempre, o escritor Ousmane Sembène, é o chamado "pai do cinema africano". A filmografia do pioneiro senegalês, de cinco décadas diferentes, traz à memória os fantasmas do colonialismo francês e a pobreza do seu povo, mas também retrata os males tradicionais do continente como a mutilação genital feminina. Uma das bases destes filmes são os seus próprios livros e contos.