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Gonçalo Palma
21 janeiro 2022, 09:06
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Cat Power: alma sempre em fuga

Cat Power: alma sempre em fuga
Mario Sorrenti (cortesia da promoção da Domino)
Gonçalo Palma
21 janeiro 2022, 09:06
O novo álbum, "Covers", conta com versões de temas de Lana Del Rey, Frank Ocean, Nick Cave ou Iggy Pop.

Cat Power vai tendo uma predileção por fazer versões. O seu novo disco, "Covers", é já o seu terceiro álbum esmagadoramente dominado por temas de autoria alheia, depois de “The Covers Record" (de 2000) e "Jukebox" (de 2008). 

Cat Power altera as letras ao seu jeito de cantar. Nas suas versões, é ela que conduz a história. Desarruma alguns versos e dá-lhes uma nova ordem e outras palavras. Para a cantora, adaptar é criar, não é só alterar. É o que faz em "Covers".

Se Frank Ocean faz a jura de ter três vidas em 'Bad Religion', Cat Power diz ao taxista da história da canção que tem quinze. Se Nick Cave canta "I Had a Dream Joe", Cat Power emparelha num "We Had a Dream a Joe". Não são apenas ajustes para os seus tempos.

Mas não é esse o maior filtro para aquela dúzia de canções de dispares origens. Cat Power tem uma banda que é um conversor coerente, que reencarna as canções no mesmo som personalizado de garage-rock puro e cru com que Cat Power começou por se destacar. Chan Marshall (o seu verdadeiro nome) dá-lhes ar, remetendo-os à menor instrumentação possível: a guitarra elétrica, o baixo, a bateria e o piano raramente se cruzam nos mesmos fragmentos de segundos. A saturação é tudo o que não se quer neste disco.

Mas nem todas as versões de "Covers" são especiais. 'A Pair Of Brown Eyes' dos Pogues é desnudada da sua parafernália folk para um mero acompanhamento de um órgão - sem acordeão, flauta ou banjo - mas aqui Cat Power respeita integralmente a letra e o romantismo ébrio de Shane Macgowan, de alguém de olhos castanhos que o esperava mas que afinal não existia. Cumprem-se o tributo e a transformação, mas não o seu engrandecimento. O avivado original fica a brilhar de mais, quando posto à frente desta versão.  

Mas é das faixas fortes que reza a história de um disco. E em "Covers", há algumas versões desarmantes. Cat Power emagrece radicalmente as letras e a instrumentação de 'I Had a Dream Joe' de Nick Cave, até virá-lo para um drama ainda maior, com uma tensão musical a acompanhar a epifania. Cat Power não desvia apenas a primeira pessoa do narrador participante, torna a terceira pessoa, Joe, na sua segunda pessoa. Dela. Fala com Joe e não só dele. 

'Against The Wind' é uma versão tão transformada que nos esquecemos do rasto do original, um clássico do country-rocker Bob Seger deixado para trás pela viajante Cat Power que agarrou o tema para si. Em 'Endless Sea' de Iggy Pop, Chan Marshall apanha as deixas das vogais do original para ondular nelas como bem entende. Em 'I'll Be Seeing You', interpretado primeiramente por Billie Holiday, Cat Power compreende a canção, tornando-a mais pequena de meios, afagando para a sua concha, cantando tão bem o amante fisicamente ausente.

O clássico country dos anos 50 'It Wasn't God Who Made Honky Tonk Angels' é a exceção do minimalismo de rock garageiro de "Covers", num pequeno desvio para o honky tonk, onde se ouve um contrabaixo e uma guitarra pedal steel.

Há também um original, 'Unhate', em que Cat Power passa de alma perdida para a pura auto-destruição, e num acesso de crise de auto-estima enuncia uma frase já em tempos escrita por Kurt Cobain: "I hate myself and want to die". A escuridão da letra é absoluta, mas como é canção, há uma luz que está na voz lindíssima de Cat Power. Nunca nada está perdido quando ela canta.

Artigo de opinião.